Olhando e ouvindo Nelson Sargento e sabendo da sua agenda de adolescente para o carnaval, fica fácil perceber que a Mangueira lhe dá amor, o samba lhe dá vigor – só pode ser esse o segredo para tanto fôlego aos 94 anos. São sete décadas dedicadas à sua escola do coração. Nessa entrevista, o ex-pintor de parede conta como sua agenda inacreditável entra em cena nesta época do ano, o que seria surpreendente para qualquer idade. Nelson fica atento até ao figurino: recentemente, tiraram o vinco da calça do seu terno feito pelo Walter Alfaiate. Ao perceber, pediu à Livea Mattos, sua nora, que providenciasse o quanto antes o vinco de volta.
Humor e alegria são constantes na vida do sambista: “Onde se compram rugas?” – perguntou, e ele mesmo completou: “Para fazer jus à minha cara e à minha idade”. Não sendo quando se lembra de histórias de racismo, segue galanteador e com muita alegria, ou antes, durante ou depois do carnaval, com ou sem o vinho (bebida que considera dos deuses), a cerveja e a cachacinha, que mantém também, tanto quanto os muitos sonhos.
Qual a agenda do senhor neste carnaval?
Muso do bloco Timoneiros da Viola; dia 2 de março vou estar no Sambódromo para apresentação no camarote da Portela, com Marcelo D2; dia 3, de novo Sambódromo, no Camarote Número 1 (convidado da Roda de Samba do Dudu Nobre); dia 4, desfile na Estação Primeira de Mangueira, representando Zumbi dos Palmares; dia 9, Sambódromo, na apresentação no camarote Folia Tropical e, se Deus quiser, de novo, no desfile na Estação Primeira entre as campeãs.
Aos 94, de onde vem tanto vigor?
Olha, eu tenho certeza que é a Natureza que me conduz – sou bem-condicionado.
Principais lembranças para alguém cuja vida inteira foi dedicada ao samba…
Tive uma infância no Salgueiro, até 10 anos. Ficou na minha memória, para sempre, um personagem da Azul e Branco (uma das três escolas que se juntaram para formar a atual acadêmicos do Salgueiro), o Antenor Gargalhada. E não me sai da memória um samba que aprendi naquela época da infância, de autoria dele, “A cabrocha é bela/ Eu gosto dela…” (aí ele canta letra e melodia).
Analisando década a década o carnaval carioca, o que vem à cabeça do senhor? Incluindo a Mangueira….
É difícil responder, pois a Mangueira é primordial em matéria de enredo. Há um enredo que eu gosto muito sobre Monteiro Lobato, sem falar de “Primavera”, de minha autoria com os parceiros Jamelão e meu pai adotivo, Alfredo Português. Mas todas as escolas são muito importantes; todas elas representam um cidadão muito importante: o samba é a união entre elas, os sambistas, são uma herança. Cartola e Paulo da Portela, por exemplo, foram muito amigos e se visitavam – assim como eu visito outras escolas e nos tratamos como coirmãos. Tenho amigos em todas as escolas e, é claro, dentro da Mangueira: Monarco, Noca da Portela, Wilson Moreira, Dona Ivone Lara, Wilson das Neves, Paulinho da Viola, Djalma Sabiá, Délcio Carvalho, Zé Kéti, Wálter Alfaiate, Aluísio Machado, Martinho da Vila, Tantinho da Mangueira, Zeca Pagodinho, Tia Maria do Jongo, Rubem Confete, Agenor de Oliveira, Didu Nogueira, Clementina de Jesus, Paulão 7 Cordas, Arlindo Cruz, Beth Carvalho, Leci Brandão, Alcione, Zé Luis do Império, Marquinhos China, Luís Carlos Magalhães, Dudu Nobre, Brogogério, Moacyr, João Nogueira, Diogo Nogueira, Pedro Miranda, Ney Lopes… Não me lembro de nenhum desafeto; ilustrei com os nomes de alguns amigos e amigas, mas poderia escrever um livro enumerando todos. E uma função social do samba é a coletividade, o companheirismo, o apoio mútuo, a união em si; temos que andar de mãos dadas sempre. Citei alguns amigos que já partiram, por uma razão: acredito que somos imortais, viveremos para sempre na memória de quem nos conheceu…
Qual o real significado do carnaval para o Rio? Já foi mais prestigiado?
O carnaval do Rio cresce a cada ano que passa; muitas vezes, as pessoas não entendem… Crescem no quesito enredo, fantasia…É uma eterna crescente, o folião pode não perceber isso, mas a base do carnaval é o samba, e esse realmente agoniza, mas não morre.
Pode comentar a relação, digamos assim, do prefeito Crivella com o carnaval? Num encontro com ele, o que diria ou pediria?
O que acontece é que o prefeito atual do Rio não gosta de samba. Assim, não temos nada de bom pra falar a respeito dele. O Crivella está muito bem incluído na frase do Caymmi: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é / É ruim da cabeça ou doente do pé”. Me desculpe, prefeito, mas a verdade é a verdade!
As passistas que levantam muito ferro, com corpos excessivamente musculosos, o que o senhor acha?
O importante é o samba de verdade, independente do físico. O importante é sambar!
Existe racismo no samba? O senhor já passou por isso em algum momento?
Aonde chego e me apresento como sambista, sou bem recebido; se fazem careta, eu não vejo. Como eu tenho dito desde 1978, infelizmente, a situação do negro em nosso país continua sendo de muita luta e resistência, assim como o samba, também uma de nossas formas de resistência. Negro, forte, destemido, duramente perseguido, nas esquinas, nos botequins, nos terreiros e arrastados pela rua, estrangulados em supermercado, alvejados por terem nossos guardas-chuvas “confundidos” por armas…. Meu desejo é que sejamos respeitados plenamente, lutamos e vamos continuar lutando por isso.
O senhor teria alguma receita secreta de comida e bebida?
Por mim, comeria arroz, feijão, carne e farofa pela manhã! Mas como mesmo é um mamãozinho, café, leite. No almoço, antes de tudo uma saladinha verde com um bom tempero, sopa leve, essas coisas; antes de dormir, chazinho com torradas. Vinho é minha bebida dos deuses, só uma vez ou outra; cerveja preta é uma vez por semana. Quando estou muito feliz, tomo cachaça mesmo. Rsrsrs!
Foto: Edinho Alves/Divulgação