No museu do Prado, um pequeno painel de Hieronymus Bosch representa a tentação de Santo Antão. Em destaque, vemos o velho eremita sentado num buraco de árvore, tendo, por trás, uma paisagem miraculosa, feita de cores ocres e verdes suaves, a qual se abre num caminho que corre entre pequenos vales e colinas arborizadas. No mesmo plano, uma capela rústica, junto a um canal, descortina um horizonte de arvoredos. Entretanto, o eremita anichado na árvore, curvado para frente, o queixo e as mãos repousando sobre a pega de seu cajado, não vê nada disso. Seu olhar está voltado para o rio que corre à sua frente, onde flutuam seres estranhos, meio vivos, meio mecânicos, tendo alguns subido para a margem, com olhar ameaçador; outros, semelhantes, armados de escadas e ancorotes, empreendem um assalto ao mundo.
A história conta que Antão sentiu que faltava um sentido maior para sua vida. Ele tinha sede de perfeição, típico de quem sente essa falta. Foi então que, ao participar de uma missa, escutou um trecho do Evangelho que o tocou profundamente: era Mateus 19:21, quando Jesus diz ao jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens e dá aos pobres. Com isso, terás um tesouro nos Céus; depois, segue-me”. Ele sentiu que a fala vinha ao encontro de sua sede. Vendeu todos os seus bens e foi morar numa caverna no deserto, vivendo uma vida de oração e sacrifícios, no isolamento social. No entanto, quanto mais Santo Antão procurava refugiar-se, mais as pessoas o descobriam.
Tal como Santo Antão, os seres humanos, na pandemia, estão sendo obrigados a voltar as costas para o mundo. A alegoria da caverna de Platão — bem antes de Santo Antão — alertava-nos para isso. Quando nos acorrentamos em nossos buracos e nichos, por motivos inconscientes, e outros, inclusive políticos, nosso olhar dirige-se apenas para o tempo que corre à revelia da vontade. No entanto, nunca ninguém é santo.
Se nos deixamos levar pelo desconhecimento de nós mesmos, ele vai tornar-nos reféns de nossa má imaginação, povoando uma realidade que nos escapa pela falta de experiência e maturidade emocional. Não será a OMS — que não é santa e nem foi eleita por nós — que conseguirá dar as respostas de que precisamos. E também não será o atual governo eleito, que, para muitos, é diabólico, o que dá no mesmo de chamá-lo de santo, nem a oposição vinda de governos anteriores, que nem sequer mostram sombra alguma de autocrítica quanto à sua responsabilidade com o que ocorre no presente.
Quando o ser humano está nas correntes da inércia psíquica, facilita assaltantes que atacam dispersos e aterrorizantes. Pode até chegar ao absurdo de alimentá-los, com visível satisfação, pois, quanto mais fortes estão os inimigos, mais justificativa existe para a posição radical de isolamento.
Como — com todos os progressos espetaculares da ciência — um simples vírus consegue fazer com que a realidade esteja predominantemente dominada por estranhas criaturas invisíveis, e outras bem visíveis com roupas pretas voltando-se contra nós?
Todo isolamento na história das pandemias cobrou seu preço, senão no imediato, em algum ponto do futuro, com a economia destroçada e dominada por grupelhos. O não isolamento também cobra seu preço em números fúnebres, infelizmente tão ao gosto de certas mídias. Tal como Santo Antão, seus operadores parecem só enxergar seres estranhos e ameaçadores flutuando sobre o planeta Terra.
Ao mesmo tempo, quanto mais nos isolamos, mais o contato humano nos encontra. Felizmente.
Certamente que muita coisa pode ser traduzida pela metáfora do Santo, a começar por aqueles que se acreditam santificados e ungidos e achando que basta seguir certas ideologias radicais para confirmá-lo. Os santos são melhores do que os demais seres humanos — estão acima dos mortais, o que significa que não estão nem um pouco preocupados com o humano e muito ocupados com o poder.
Se não buscarmos a veracidade em nossa experiência própria, se não respeitarmos a nós mesmos, ficaremos à mercê de discursos politicamente corretos, feitos por políticos espertalhões e outros funcionários vitalícios da esfera institucional, que só pensam em si mesmos e nada fazem além de repetir bravatas e distorcer a veracidade dos fatos. E o que é pior: usando a ciência — sem ter o menor conhecimento dela — em nome da ideologia.
Foto: reprodução do painel de Hieronymus Bosch, que representa a tentação de Santo Antão, no Museu do Prado, em Madrid, Espanha.