O recente crime do assassinato de um pai pelos próprios filhos (pastor Anderson do Carmo) chocou o País, deixando um rastro de dúvidas e indagações. A arma do crime, para variar, não foi comprada legalmente; o comércio ilegal parece sempre ser bem profícuo. Quem vende e compra as armas viola (trai) a lei vigente, e quem executa o crime alega vingar-se de uma traição amorosa; parece que o criminoso queria defender a honra da mãe traída.
Freud nos legou um instrumento de alta precisão para observar os problemas humanos: o mito de Édipo — nele estão contidas todas as possíveis facetas da traição. A vantagem do mito é possuir uma linguagem quase onírica, somada à impossibilidade de se transformar numa teoria passageira, pois ele transporta uma linguagem universal que fala o idioma de todas as épocas. A lei não impediu o crime, e o grupo familiar agiu tal como a horda primitiva descrita por Freud em “Totem e Tabu”. Houve um retrocesso civilizatório sempre assustador por natureza: mata-se o pai (a lei) e executa-se um banquete totêmico (festival de falsidades e mentiras).
Um dos problemas frequentes que podem desencadear um processo terapêutico é o da traição. Quando uma pessoa traz essa questão ao psicanalista, ela permite uma visão de acontecimentos que são como uma penosa e contundente fotografia da realidade. Há várias espécies de traição que podem estar associadas à traição amorosa: social, política, ideológica, religiosa.
Assim é o crime que envolve uma representante do povo, uma deputada federal, seu marido, um pastor evangélico, e seus muitos filhos naturais e adotivos. Um amigo comentou: com tantos casais querendo adotar uma criança — todos eles esperando na fila, por anos —, como esse casal consegue adotar um número tão grande?
As histórias de traição que terminam em crime são sempre tão dramáticas que permitem resgatar o sentido que Shakespeare põe nas palavras de MacBeth: a vida é apenas um sonho, uma fábula enganosa, contada por um idiota, cheia de som e fúria, e que nada significa. Aos poucos, quando se desdobra o problema — quando se penetra além da superfície —, o sentimento de ser traído mostra uma traição ainda maior: a de ter sido traído pela realidade que estava ali bem à frente. A obviedade fornece um sentido ainda mais doloroso quando aparece sem nenhuma maquiagem.
Sem responder a qualquer questão, o psicanalista propõe aos seus pacientes o precioso ato de pensar naquilo que nunca foi pensado antes. Pode até ser algo bem simples e complexo ao mesmo tempo; o engano faz parte da realidade humana. No entanto, o engano poderia ter sido evitado? Essa pergunta se repete muitas e muitas vezes, em qualquer forma de traição.
A pergunta faz parte dos momentos de mais angústia e reflexão, porém o se não existe; se o trágico pudesse ser evitado, certamente, o seria. Resta o defrontar-se com a falta essencial da relação que se acomodou e que se garantiu em simples crenças baseadas em desejos infantis — em vez de se dedicar ao trabalho do desenvolvimento da intimidade. Sentar-se numa poltrona e escutar pacientes fazem parte do trabalho constante dos psicanalistas, mas não são essas as tarefas mais difíceis. O mais difícil é compartilhar com eles que, no centro, se encontra a questão da verdade, a qual nunca se pode atingir de forma absoluta. Esse fato nos dá uma direção, nos move, e exige aperfeiçoamento diário.