Margaret Dalcolmo, pneumologista, pesquisadora da Fiocruz, membro do grupo de especialistas do Ministério da Saúde, que, como sabemos, virou praticamente uma porta-voz do coronavírus, sobretudo pela reconhecida competência, além de médica incansável.
Desde março, atua dia e noite, contra a pandemia e a favor de quem dela precisa como médica, seja quem for: grava na TV, faz consultório, escreve artigos, está a par de todos os acontecimentos em volta da Covid-19, com fôlego inacreditável. Em março, disse a esta coluna: “A ciência e a compaixão têm que estar de mãos dadas”.
E outra: parece antevê algumas situações: “Teremos o mais triste janeiro de nossa vida, com o recrudescimento importante da epidemia em várias capitais, em vários estados. A segunda onda materializou-se, não há dúvida; providências poderiam ter sido tomadas antes”, disse semana passada. Enquanto, agora, declara: “É muito importante alertar que a cepa com as novas mutações que circulam em Manaus já está no Rio, com uma transmissão muito alta de pessoas internadas, e a faixa etária diminuiu”.
Leia sua entrevista.
O que dizer aos cariocas?
No Rio, há risco de acontecer uma piora importante com essa mutação brasileira. A cepa de Manaus é brasileira, o que justificaria esses comportamentos inadequados, com todo mundo comportando-se como se não existissem nem epidemia, nem amanhã; portanto, o risco de piora no Rio é grande. Nós podemos ter uma situação muito grave ainda em janeiro. Não chegaria a ser igual a Manaus porque não há problema de logística de distribuição de oxigênio no Rio. No entanto, poderemos ter uma tragédia, como falei aqui, de que teríamos o janeiro mais triste da nossa vida, e eu adoraria ter errado, mas não errei. E sabíamos que podia acontecer uma segunda onda, que se materializaria através de Manaus, e está mostrando isso: podemos ter situação semelhante em outras cidades, particularmente, no Rio.
O que o drama de Manaus desperta na senhora, como pessoa e como médica?
Como pessoa, eu me sinto solidariamente enlutada com as perdas de tantas famílias; algumas inevitáveis, mas muitas, evitáveis. Como médica, sinto-me muito comprometida, como sempre, com solidariedade e admiração por tantos colegas que, desde o início da pandemia, continuam trabalhando no “front”, com muito risco, mas com muita capacidade e comprometimento, estudando, trabalhando e assistindo. Sinto-me estimulada e, também, decepcionada por um lado, por tantos alertas que pedimos, e não fomos ouvidos. Muito frustrada, também, pela discordância entre essa retórica tão fundamentada que muitos de nós tivemos em relação a tudo o que foi publicado, artigos científicos mostrando o que era razoável e não razoável. Então me sinto muito frustrada de isso não ter funcionado no Brasil, frustrada de tantos colegas prescrevendo o chamado “tratamento precoce”, que não serve para absolutamente nada, como já sabemos, e que acaba funcionando como um mecanismo de ilusão para as pessoas com boas intenções ou não. De todo modo, sinto-me estimulada a continuar a fazer o que sempre fizemos, que é trabalhar como médicos cumprindo os deveres e pela condução dos estudos da vacina, como temos feito com a BCG para a covid (ela foi desenvolvida para combater a tuberculose e, depois de 100 anos de sua descoberta, pesquisas, incluindo da Fiocruz, têm demonstrado que ela pode ser uma aliada no combate ao SARS-CoV-2) e na rotina do dia a dia.
Passamos de 200 mil mortos pela covid. Se o Brasil tivesse começado a vacinação ao mesmo tempo em que outros países da América Latina, o que poderia significar em número de vítimas agora e num futuro próximo?
Não tenho dúvida de que teria sido muito desejável que nós tivéssemos tido a visão e negociado doses de vacinas com outras empresas que estavam produzindo, inclusive com estudos no Brasil, como, por exemplo, a Pfizer e a Janssen-Cilag (braço farmacêutico da Johnson & Johnson). Ambas fizeram estudo de fase 3 no Brasil (a última antes da aprovação). A Pfizer foi aprovada e tem sido a mais usada nos EUA e nos países europeus, então, sem dúvida, seria desejável, mas o Brasil perdeu o lugar na fila e, hoje, se recebermos, vamos ter um número de doses muito baixo da Pfizer (é sabido que, na última semana, a Pfizer disse ter encaminhado três propostas para o Governo brasileiro, para uma possível aquisição de 70 milhões de doses, sendo que a primeira proposta foi encaminhada em 15 de agosto de 2020). A justificativa de que não se poderia usar no Brasil uma vacina que necessita de super-resfriamento, em freezers, a menos 80 graus, não é verdadeira, porque sabemos que temos instituições públicas e privadas que poderiam receber, com toda segurança, essas vacinas de forma a cobrir, pelo menos, as populações das grandes cidades e das capitais, sem nenhuma dificuldade. Além disso, a iniciativa privada, que já se mostrou tão presente durante a epidemia, manifestou-se. Eu mesma fui procurada por diversos empresários oferecendo-se e perguntando para onde deveriam doar e quantos freezers seriam necessários para tal.
Por que o Brasil ficou tão atrás? Qual o gesto de algum dos governantes mais chamou sua atenção?
Acho que o Brasil pagou um preço caro com o negacionismo, sem dúvidas, emulando o modelo norte-americano, cujo resultado é catastrófico. A situação nos EUA está muito ruim, e foi o país que teve o pior desempenho e um péssimo exemplo, que o Brasil tentou seguir, mas felizmente isso não foi seguido por todos porque a ciência brasileira mostrou-se muito presente, e alguns governadores tiveram posturas mais cuidadosas com as aberturas: os fechamentos de seus estados, medidas sanitárias que exaustivamente repetimos.
O que deveria acontecer com políticos e médicos que divulgam fantasias negativas sobre a vacina?
Sem dúvida, são muito lamentáveis essas manifestações, que não passam de sofismas iludindo a população com termos como “tratamento precoce” ou “protocolos”, quando sabemos que não existe nem uma coisa nem outra para a Covid-19. Os melhores tratamentos para casos graves são as boas práticas de terapia intensiva. Para os casos que são a maioria, mais de 80%, de formas leves e moderadas, é necessária apenas a atenção médica. O contato com o médico usando as tecnologias que poderiam ter sido acessíveis no SUS, a telemedicina, que não teve uso restrito a grupos pequenos, infelizmente, porque é uma coisa que fazemos desde o início da pandemia. Já que os pacientes não podem vir a consultas, eles são vistos usando toda a tecnologia disponível; com isso, conseguimos detectar se o paciente apresenta qualquer deterioração clínica, levando à internação sem hesitação. O que salva vidas não é usar remédio sem comprovação científica, mas usar as boas práticas de cuidados intensivos, que é o que realmente interfere sobre a mortalidade e nas complicações decorrentes da Covid-19.
Acredita que a população vai respeitar o calendário de vacinação, aguardar seu tempo, ficar quietinha em casa, ou pode ter muita confusão, principalmente diante de atitudes de alguns governantes?
Espero que a população obedeça à ordem de prioridade que está corretamente feita pelo Programa Nacional de Imunização: primeiro, o grupo que recebeu placebo nos estudos clínicos; depois, as pessoas idosas que vivem em asilos e seus cuidadores, profissionais da área de saúde e todos que estão na linha de frente com regularidade. Estimamos 14 milhões de pessoas que deveriam ser vacinadas no grupo de prioridade e esperamos contar com a população para que obedeça aos critérios das autoridades sanitárias.
E sobre as raras aparições do ministro da Saúde, muitas vezes falando num tom quase ameaçador, pode interferir de que maneira em nossas vidas?
É muito desejável que as autoridades sanitárias estejam presentes nos órgãos de comunicação e prestem conta à população no sentido de informar de maneira verdadeira o que pode ser esperado nos próximos meses, mas sobretudo que se diga a verdade do que é bom ou ruim e que tenhamos a grandeza de admitir que poderíamos ter feito melhor, providenciado os insumos necessários para uma grande campanha de vacinação. Lembramos que o Brasil é um país que sabe vacinar muito bem – nossa experiência com campanhas é exitosa, e essa é a “expertise” com a qual nós vamos contar para a vacinação em massa. Que se faça de forma pacífica e eficaz no Brasil, como um todo.