Uma antiga história da Cabala conta que um sábio fundador de uma corrente de pensamento, quando tinha uma tarefa difícil pela frente, ia a certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, e o que ele queria se realizava. A geração seguinte ia ao mesmo lugar no bosque, mas não sabia acender o fogo. Entretanto, podia proferir as preces; aí tudo acontecia.
A terceira geração não sabia acender o fogo e nem fazer preces, apenas sabia o lugar no bosque, e isso era suficiente para os objetivos serem alcançados. A quarta geração não sabia acender o fogo, não declamava preces, não conhecia o local do bosque, mas podia narrar a história, e isso era suficiente. Pois, no fundo, foi sempre a história que transmitiu, desde o sábio, a essência do que se devia fazer.
A alegoria serve para muitos acontecimentos na história da humanidade. As gerações afastam-se das fontes de mistério e, com isso, perde-se pouco a pouco, a lembrança do que a tradição ensina sobre o fogo, o lugar, e a técnica. Felizmente, porém, os homens ainda podem narrar a história, o que deveria ser suficiente, pois, de algum modo, ela pode preservar e transmitir que existe um mistério em todas as coisas. Com o mistério, chegamos a uma compreensão transitória e somos impulsionados a continuar expandindo.
Narrar significa também interpretar. A interpretação, obviamente, não é algo exclusivo da psicanálise. Não é a psicanálise que interpreta para ser psicanálise — é o homem que interpreta para ser homem. Nossa humanidade, as fontes de mistério que irrigam nosso pensar e nossa criatividade, provém de nossa capacidade para interpretar. Assim, quando nos querem tirar a opinião, é o mesmo que cruelmente tentar destruir nossa humanidade.
Recentemente, deparei com um indivíduo, que se diz psicanalista, pretendendo formular uma “lei” institucional que proíbe os analistas de darem interpretações (opiniões) a seus colegas. Não se sabe por qual motivo ele não gostou de uma opinião que dei sobre o abuso dos grupos de WhatsApp (um grupo específico para tratar de assuntos societários que estava sendo transformado em terra de ninguém com a publicação de todo tipo de bizarrices) e confundiu minha opinião com uma interpretação analítica. No entanto, ele nada mais fez do que interpretar a minha alegada interpretação. O que é isso? Incapacidade para ver além do próprio umbigo?
No plano institucional, uma opinião (interpretação) não tem nada a ver com o que se passa no contexto de um “setting” analítico onde os critérios da interpretação (opinião) só têm validade pelo tipo de transformação observável que produz. Assim, o importante não é a interpretação, mas a transformação que produz, e esta ocorre até pelo silêncio, pelo não dito.
O fato que relatei mostra como um indivíduo pode exemplarmente esquecer os ensinamentos das gerações que se sucederam a Freud, o sábio fundador, e com isso se instalar num dos mais obtusos, contraditórios e autoritários discursos que eu já havia presenciado no contexto institucional psicanalítico. Não é muito diferente em outros contextos institucionais.
Em outras palavras, ao perder o contato com o mistério gerador da psicanálise, esse indivíduo transformou a psicanálise em algo que passa bem distante de qualquer de suas fontes. Assim, posso dizer que ele não sabe acender o fogo, não sabe declamar o mistério, não sabe onde está o bosque, e não tem como contar a história da psicanálise.
Prova inconteste disso é que ele, querendo se passar por sábio (ou sabichão), declarou que Freud não disse que “às vezes, um charuto é somente um charuto”. Então, se Freud não disse, por que usar a frase para significar que Freud fez apologia a não fazer interpretações? De qualquer forma, se Freud disse tal frase, então Freud interpretou. Se não disse, temos alguém que usa Freud para mentir. O que também é interpretar.
Sempre lamento não ter grande coisa a dizer sobre a Instituição psicanalítica. Aos que se sentem frustrados ou chocados quando menciono fatos esdrúxulos, a única coisa que posso fazer é me desculpar. Não esperem que uma instituição por se chamar psicanalítica seja diferente ou melhor do que outras.
Entendo que, nas questões levantadas por esse indivíduo, existem deslocamentos lógicos pretendendo dar conta de diferentes paradigmas como se eles fossem a mesma coisa. Eles não são. Não é possível reduzir o contexto social ao psíquico, e vice-versa.
Também não pretendo fazer afirmações demagógicas e/ou politicamente corretas para serem aplaudidas por quem concorda, ou vaiadas por quem discorda. Tento falar sobre psicanálise, e isso é obviamente distinto de fazer política institucional.
Não sou agente da instituição, mas, se expresso minha opinião, se a torno pública, isso é política e direito de cidadão. Algo muito antigo que remonta aos filósofos gregos.