Muitos amigos e analisandos comentaram que a morte de João Gilberto trouxe recordações de uma época em que havia gentileza entre as pessoas. A música que ele criou trazia em si a riqueza das palavras gentis, tão inspiradora para seus parceiros e contemporâneos, e que a atualidade parece ter esquecido. Quem nele se serviu de exemplo pode compor com amor músicas e letras com a verdadeira poesia, aquela que não coincide consigo mesma — uma impropriedade desafinada substancial —, mas que perpetra exatamente a poesia.
Refletindo sobre tais fatos, dei-me conta de que a gentileza — uma das características fundamentais do ato materno para levar o bebê ao seio — permite conviver com as diferenças de qualquer tipo. Torna-se possível conversar sobre pontos de vista totalmente contrários em qualquer lugar. Hoje em dia, as diferenças ideológicas — e outras quaisquer — acabam com as melhores festas de família, exterminam as rodas de amizade, afundam os diálogos criativos que sempre surgiram do confronto das diferenças.
A gentileza torna possível chegar a um meio-termo, ainda que temporário, mas muito sincero. Permite sorrir e brincar quando alguém nos apresenta pontos de vista contrários ao que acreditamos. Todavia, o mau humor religioso-ideológico tomou conta do que antes era motivo de uma jocosidade amistosa. Muitos agora trazem dentro de si a ditadura do discurso do ódio, implantado por ideologias para criar antagonismos de toda espécie.
O ódio acabou com a gentileza e estabeleceu o reinado da estupidez, da grosseria, da arrogância e da curiosidade invasiva. Passou-se da gentileza que busca poesia para a ofensa gratuita e grotesca em busca da opressão. Aplica-se o termo “lavagem cerebral” para quem não concorda com a “lavagem de dinheiro”. Procura-se justificar erros graves com outros que são minimamente duvidosos.
Assim, nesse universo perverso, a gentileza transforma-se também em hipocrisia e faz comunista ateu ir à missa para receber a hóstia; evangélico direitista pregar a legalização da violência como solução. O indivíduo faz, como se diz popularmente, o “diabo” em nome de chegar ao poder e ter razão moral. A ética que se dane. O que vale é o se dar bem a qualquer preço. Tudo é feito friamente, calculadamente.
Eu penso que o problema principal do ódio é o desrespeito pela diferença última que é transcendental para fundar a identidade humana. O ódio sempre transformou o ser humano em mercadoria, em algo manipulável, e a ética é substituída pela afirmação de uma plasticidade irreal da existência humana que usa as mídias sociais para se difundir. Como psicanalista, cabe-me observar e pensar no discurso que as pessoas me trazem com esses conteúdos e buscar, com ele, ressaltar a individualidade de cada um em sua história particular.
Em qualquer circunstância, penso que devo insistir, mais do que nunca, na gentileza trazida pelas palavras que buscam significado vivo e entendimento, e não na simples satisfação das descargas de ódio ideológico-religioso. A gentileza resgata a ética entre as pessoas; nunca a gritaria e o palavrório histriônico.
No seu movimento, a gentileza pode ajudar a encontrar os fundamentais caminhos amorosos no encontro de duas pessoas diferentes e que irá transcender o idiotismo hacker do voyeurismo e do exibicionismo e, sobretudo, superar o deboche arrogante da perversão corrupta. É impossível ser feliz sozinho.
No final, será sempre a linguagem poética surgida de elementos não coincidentes, diferentes e autônomos, que pode nos fazer entender a infinidade de coisas que a cegueira política se recusa a entender. Sou desafinado com a politicagem e assim permaneço. Vivo sonhando mil horas sem fim.
Foto: EFE/Marcos Hermes/Divulgação