Sobre dizer que o Rio é a vitrine do Brasil ou que o Rio é o centro nervoso do País (esta última consta ser do Brizola), ninguém há de duvidar. Neste domingo (15/11), dia das eleições, vamos saber quem vai administrar essa selva perigosa e maltratada que a cidade virou. Por essas e outras, a coluna conversou com o carioca Maurício Santoro, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio (Iuperj), professor-adjunto do departamento de Relações Internacionais da UERJ, onde integra o Núcleo de Estudos sobre a China, e cujo lema é “desconfiem das promessas dos políticos, mas acreditem em suas ameaças”. Leia a entrevista daquele para quem nada da política passa despercebido. Sabe desde o que pode vir manso ou furioso, aliás, como a Covid.
Sabemos que você não é vidente, mas quais suas previsões para as eleições no Rio?
Estamos vivendo uma sucessão nos últimos seis, sete anos, tanto econômicas quanto políticas, escândalos de corrupção, o que vai deixando as pessoas muito cansadas, confusas, e ainda temos uma pandemia no meio disso tudo. Então é um ótimo sinal quando as pessoas ficam incomodadas e prestam atenção no que está acontecendo no País; dá para fazer algumas previsões observando as estatísticas. O Rio é muito bom para entendermos o que está acontecendo com o Brasil este ano. As últimas eleições para governador e presidente, em 2018, foram muito baseadas na revolta das pessoas contra a política tradicional, contra os grandes partidos, baseadas na Lava-Jato. A característica principal foi a ascensão de líderes que não tinham um histórico na política, mas que vieram das Forças Armadas, da Polícia, que tinham alguma outra coisa que os deixaram famosos, usando o argumento de que eram melhores do que os políticos que tinham estragado o País. Agora, em 2020, estamos sentindo um clima diferente: os eleitores estão privilegiando o retorno político mais tradicional tanto no Rio quanto em outras grandes cidades.
O que acha das opções dos candidatos à Prefeitura?
Os que estão indo bem nas pesquisas ou são os candidatos à reeleição, ou são prefeitos que tiveram outros cargos políticos de destaque. O grande favorito no Rio, segundo pesquisas, é o Eduardo Paes. E qualquer um que está empatado tecnicamente em segundo lugar nas pesquisas (Marta Rocha, Benedita Silva e Marcelo Crivella) pode ir para o segundo turno. Vamos ter dias emocionantes. Isso é interessante porque alguém como o Crivella, que tem apoio de uma igreja e pode mobilizar muita gente, corre risco de nem sequer chegar ao segundo turno. O Paes tem liderado desde o início, a não ser pelas projeções de um segundo turno com a Martha. Não à toa, a campanha dele começou a bater contra ela, como a de Crivella, para impedir a ascensão das últimas semanas. Paes é ex-prefeito, tem uma boa reputação entre os moradores; já Crivella está muito mal avaliado e não me lembro de uma outra situação em que a disputa pela reeleição teve esse nível de rejeição. E temos pelas candidaturas da esquerda no Rio, todas mulheres: Martha, Benedita da Silva e Renata Souza. Isso não é uma coisa comum e, se elas fizessem uma aliança, seria uma candidatura muito poderosa, mas não chegaram a um acordo, e cada uma lançou a sua própria, o que retrata a dificuldade da esquerda.
Acredita que no Rio o cenário está polarizado?
Está bem menos. A única figura da polarização no Rio é o Crivella, mas ele está com avaliação tão baixa que nem conta – há um consenso muito grande de que os cariocas querem qualquer coisa menos o Crivella. E, com esse cenário de uma certa moderação, está uma eleição mais tranquila.
Qual o maior desafio que o prefeito vai ter?
Sem dúvida nenhuma, a Saúde e a Educação. E claro, também, uma série de questões ligadas à economia, ao desemprego, mais aí tem relativamente pouco que os prefeitos podem fazer, é mais o governo federal.
Acredita que as eleições podem funcionar como um plebiscito sobre Jair Bolsonaro?
Acredito que não. O que temos são disputas locais em que os candidatos apoiados pelo Presidente estão indo mal nas pesquisas, mas por razões que, muitas vezes, nada têm a ver com ele. O caso do Rio é um exemplo disso. O Crivella está indo mal pelos problemas como prefeito, pelo abandono da cidade, pelas dificuldades na Saúde. Em São Paulo, Celso Russomano está mal porque sempre foi assim: ele começa na frente e começa a cair. É uma instituição das eleições paulistanas. Não vai acontecer como com o Wilson Witzel; agora, Bolsonaro não tem mais esse poder – as pessoas estão fazendo outro tipo de cálculo, de escolha. São questões locais, mas também mostra um desgaste do presidente. Ele tem estado isolado desde o início da pandemia e enfrenta perda crescente de popularidade e divisões dentro da base de apoio que o levou ao Planalto, sobretudo o grupo que votou nele inspirado pela Lava-Jato. Hoje, ele não tem mais a capacidade de, como se diz em inglês, de ser um “king maker” (“fazedor de reis”).
Em que sentido a pandemia mexeu com as eleições?
A gente está correndo o risco de um recorde de abstenções. A orientação do TSE é que, se você estiver sentindo algum sintoma, fique em casa. Em 2018, a abstenção foi de um terço, um recorde na democracia brasileira. Acredito que vá aumentar não por rejeição política ou desinteresse do eleitor, mas pelas preocupações com a saúde pública. E tem um cenário, sobretudo para os eleitores mais pobres, de que não houve isolamento social porque as pessoas precisaram trabalhar, usar transporte público, e isso incentivou os candidatos a fazer uma campanha mais tradicional, corpo a corpo, até mais do que imaginávamos.
E por que tantos atentados e perseguições políticas?
A violência está ligada a grupos do crime organizado que estão querendo entrar na política e tentando lançar candidaturas, e acabam se enfrentando entre si. A campanha para prefeito está tranquila, mas para vereador, principalmente na Baixada Fluminense e Zona Oeste, tem um número grande de mortes.
Como você acha que será a nova política?
Uma coisa interessante é que tenho duas ex-alunas que são candidatas no Estado do Rio, duas jovens mulheres, de 20 e poucos anos. O que elas têm mais comentado é a dificuldade de fazer política sendo uma mulher jovem. A estrutura dos partidos é muito masculina e muito dominada por homens mais velhos. É um desafio em se imporem e mostrarem seriedade. Existem algumas características para a nova política, como a participação muito maior das mulheres. A segunda é o uso intenso da Internet e mídias sociais, o que aconteceu em 2018 nas eleições do WhatsApp e redes sociais, embora os políticos tradicionais tenham muita dificuldade em aprender a linguagem. Tem um outro fator que é o aumento da importância dos temas ligados às questões raciais, com mais candidatos negros ou ligados ao tema – muito parecido com o que está acontecendo nos EUA.
E já que tocou nos EUA, como as eleições de lá podem refletir no Brasil?
Os brasileiros acompanham as eleições de uma maneira muito detalhada. Sentimos como se fosse aqui: as pessoas torcendo, comemorando. Muito porque o Brasil e os EUA têm problemas parecidos, ainda que eles sejam muito mais ricos, mas os problemas sociais são semelhantes; então é como se fosse um espelho. Existe uma dificuldade muito grande dos partidos nos EUA e no Brasil em dialogar com a preocupação cotidiana do eleitor. E quem está fazendo isso é um tipo de político mais desafiador, que joga com essas mágoas dos eleitores em relação aos políticos tradicionais, às instituições. Tudo isso está muito forte e presente no mundo inteiro. As pessoas votaram no Joe Biden não porque elas acham que ele é um grande líder, um cara carismático, mas para derrotar o Trump.
Você acredita que a queda de Trump pode ter reflexos nas eleições de 2022?
Está caminhando para isso. O Bolsonaro teve um aumento de popularidade muito grande com o pagamento do Auxílio Emergencial, o que para uma família brasileira foi a diferença entre passar fome e ter comida na mesa. Então ele cresceu onde nem sonhava, como no interior do Nordeste. Só que agora passou para R$ 300 e deve acabar. Isso já se reflete numa queda, principalmente nas grandes cidades. E tenho dito que o impacto econômico causado pela pandemia é algo que a gente só vai ver no ano que vem. À medida que as pessoas voltarem para as ruas e procurarem emprego, é quando vamos ter a dimensão real do que vem pela frente. Então, o presidente vai ter meses muito difíceis, enfrentar uma população mais hostil e, somado a tudo isso, um quadro pessoal muito difícil com os filhos aparecendo em denúncias, processos judiciais, além de não ter conseguido criar seu próprio partido político e estar com uma estratégia confusa para o eleitor ao apoiar um candidato de partido diferente em cada cidade. A tendência é que ele desça ladeira abaixo e ainda perdeu o maior aliado que é o Trump; então é um cenário complicado. Por outro lado, a oposição brasileira é muito dividida – tem o conservadorismo com o João Dória, o liberalismo com o Luciano Huck, e várias frentes de esquerda que não conversam entre si. Existem de cinco a seis projetos diferentes em oposição ao Bolsonaro, ao contrário dos EUA, onde a oposição se uniu numa só candidatura. Vão ser anos interessantes.
Milícias, jogo do bicho, casos de corrupção, extorsão etc… O Rio tem jeito?
Acho que é um longo caminho; as coisas não mudam da noite pro dia. Tudo indica que o Witzel vai ser o sexto governador preso desde 2016. Uma geração inteira de líderes de Estado presos e que passaram por partidos políticos diferentes. E isso numa cidade que é referência para o Brasil em termos de cultura, sociedade dinâmica, inovadora, que é uma grande vitrine do Brasil para o mundo. A crise no Rio é maior e mais séria do que a crise brasileira como um todo. E temos algumas dependências no Estado, como a do petróleo, que é muito negativa, a política personalista, já que os grandes partidos nacionais, PSDB e PT, são frágeis no Rio. Dizem ‘eu voto naquele cara porque ele tem carisma, é um bom líder’… E tem a questão do crime organizado e milícias que é uma coisa que o Rio inventou e está exportando para outros estados. O que temos pela frente é uma tarefa da sociedade em olharmos o que deu errado, e não simplesmente votar contra fulano ou cicrano, mas encontrar alternativas para o Rio.
Você alertou em suas redes: “Desconfiem das promessas dos políticos, mas acreditem em suas ameaças”. Desenvolve?
Esse é um dos meus lemas. Nos últimos anos, tivemos essa ascensão de líderes populistas com uma abordagem muito agressiva, e as pessoas ouvem com ceticismo, achando que eles estão brincando só para ganhar voto. Temos que desconfiar das promessas porque é do jogo, mas tem que levar a sério as ameaças, políticos que usam agressões raciais contra minorias, que usam discurso contra mulheres para se autopromover – isso tem consequências muito graves. Quando você tem um líder nacional usando esse tipo de linguagem, isso estimula muitas pessoas a agir da mesma maneira. Aquele cara que guardava o ódio no fundo do armário, o ressentimento no porta-luvas, se sente autorizado a usar isso, e potencializado pelas redes sociais. Você pode postar o que quiser e ninguém vai tentar te calar. Isso gerou uma piora do debate público no Brasil, nos EUA e União Europeia e estamos tentando uma maneira de lidar com isso.
numero:13 Qual a importância do Rio para o Brasil?
O Rio é um termômetro. Os grandes escândalos de corrupção, inclusive o impeachment do Witzel, foram todos centrados na Saúde, no roubo de recursos públicos que eram usados para combater o coronavírus. Acho que o eleitor está preocupado com a Saúde. Muito da péssima avaliação do Crivella vem por isso, dos “Guardiões do Crivella”, da falta de administração nos hospitais municipais, os de campanha… Aqui, no Rio, estamos com a autoestima lá embaixo, arrastando pelo chão, mas vale a pena lembrar que o Rio é a grande vitrine do Brasil. O que acontece aqui tem um impacto global. Se a gente conseguir dar um jeito no Rio, caminhar para uma renovação política, teremos uma mensagem a passar para o Brasil e outros países. Sei que é muita responsabilidade sobre nossos ombros cariocas, mas acho que é também um lembrete do quanto a nossa cidade é importante e que vale a pena cuidarmos dela.