Desde a Grécia, o cânone ocidental constrói suas narrativas, cantando em prosa e verso trajetórias de herói. Ulisses e Hércules são substituídos pelos martírios dos santos. Até que, em 1605, Miguel de Cervantes “inventa” Dom Quixote, trazendo, definitivamente, ao centro da cena, os sentimentos humanos de toda sorte, inclusive os estados de alteração da chamada consciência. Nicolau Gogol trata do mesmo tema em “Diário de um louco”, 220 anos após Cervantes.
Em um estilo de cavaleiro solita’rio para contar o caminho de Aksentii Poprishchin, o herói, Bruce Gomlevsky, com seu padrão de um encenador criativo, inteligente e ousado, cria o monólogo “O diário de um louco” e transforma Milhem Cortaz, em seu primeiro solo, em um homem que sucumbe ao deus da burocracia e ao da desigualdade.
O figurino molambento encarna a alma que vai se dissolvendo e a mente, consequentemente, dissociativa. A forma escolhida de ficar clara a passagem do tema, da pontuação do diário, com as datas é uma solução que intensifica o sentimento de que o tempo, ainda que passe, são os mesmos horrores.
O conto vai além dos heróis da Rússia: retrata a trajetória diária dos pequenos horrores que afetam o homem comum, desamparado, frente a poderes superiores, cristalizados na burocracia e dos amores urdidos na elite. A interpretação de Milhem alcança a grandiosidade do ator, pois retrata pequeno burocrata com delírios de grandeza real, como a voz que pronuncia com força e clareza as palavras, e um corpo que não se conforma com a possibilidade da vida pequena.
A iluminação que transforma o palco praticamente em uma cela, com o jogo de claro-escuro, ajuda a evoluir das casas-escritório até o quarto do hospício. E mais: a passagem do burocrata pobre e mais solitário ajuda a que Milhem encarne o epíteto da loucura. Grandioso acaba de escolher o próximo chefe de Estado de um país estrangeiro. “A Espanha tem um rei”, exulta-o em seu diário. “Eu sou aquele rei.” Ainda que ausentes, fica claro que o mundo ao seu redor se surpreende; contudo, o louco veste seu manto real sem temor – assim como Bruce e Milhem encarnam corajosamente a excelente transposição.
Serviço:
CCBB-RJ até 4 de setembro
quintas e sextas, às 19h; sábado, às 17h e 19h; e domingo, às 18h.
Ingressos no site bb.com.br/cultura