Qual a cara do homem do pós-após? Gerald Thomas, polêmico e, muitas vezes, visionário — sempre em toda a sua doce desordem — tem o esboço final. Ele chega através de “Desenho para amanhã e depois”, título para lá de premonitório do segundo livro de ilustrações do diretor de teatro e desenhista lançado recentemente pela Galileu Edições e à venda exclusivamente pela Internet.
Nele, Gerald, dono de um acervo com mais de três mil desenhos — incluindo publicações no jornal The New York Times e na revista americana Vanity Fair — usa canetas esferográficas, nanquim e até café na criação de “apresentações do futuro”, como divulgado na apresentação do livro, a partir de desenhos proféticos e inéditos envolvendo guerra, mídia e apocalipse, assuntos recorrentes em suas peças teatrais. Tudo bem carregado em manchas, rasuras, arranhados, borrões e sangue, muito sangue. É ou não é a cara do Gerald?
Se você quer saber qual seria a dedicatória que GT escreveria em seu livro de desenhos para Marcelo Crivella, está aqui na entrevista. Ele aproveita o espaço para avaliar rapidamente o cenário atual do Brasil e reforçar a descrença nos políticos.
De um lado, papéis e tintas; do outro, palco e atores. Onde começa e termina a sua inquietação como multiartista?
Desenho desde muito pequeno. Fui criado, por assim dizer, para ser pintor. Quando assisti a “O Balcão”, em São Paulo, montagem feita pelo Victor Garcia e, logo depois, ”Sonho de Uma Noite de Verão, do Peter Brook, em Londres, percebi o palco como uma imensa tela. Era algo meio Hieronymus Bosch ou Max Ernst, especialmente o quadro “Europe after the Rain”. Depois fiquei oscilando entre Duchamp e Artaud, entre Warhol e Julian Beck. Sempre acreditei que uma fonte alimenta a outra; não castra, alimenta.
Há algum paralelo entre o primeiro livro de desenhos “Arranhando a superfície” (2012) e “Desenhos para amanhã e depois”?
Tive muito envolvimento com o que deveria ou não entrar no “Arranhando a Superfície”. Agora foi completamente diferente. O Jardel Dias Cavalcanti — a quem admiro profundamente e para quem já escrevi alguns prefácios — pediu fotos de pinturas e desenhos inéditos. Mandei. Só que faço tudo em demasia. Ele, a certa altura, gritava: “Chega! Chega, já esta bom!”. Em questão de uma semana, recebi o projeto, acompanhado do texto lindo escrito pelo Ronald Polito. Fiquei extasiado com o livro e, principalmente, em saber que a mesma editora também publica Augusto de Campos.
Como avalia a situação do Brasil?
O Brasil de hoje me parece horrendo. Trabalhei na Anistia Internacional, em Londres, na década de 70, e recebia relatórios de tortura, desparecimento e morte de “prisioneiros políticos”. Além do mais, meus pais sobreviveram ao Holocausto. Eu cresci ouvindo relatos sobre Auschwitz, Dachau. Nada me apavora mais… fora o Trump, claro.
Em 2016, publicamos aqui uma reflexão sua sobre os políticos. Voltamos a interrogar a sua própria pergunta: “Políticos. O que vem a ser isso mesmo?”
O que vem a ser essa desgraça e descrença? Pio-líticos? Lembro de “I wasn’t born yesterday (“Eu não nasci ontem”), título que sugeri a uma coluna do The Guardian, mas não chegou a ser publicado. Não acredito em políticos ou em política de países que não têm historia, amor próprio e orgulho dos ganhos sociais que fizeram, ou seja, o Movimento dos Direitos Civis a mulheres, negros, gays, índios e todos aqueles que não são a “white trash”. E por quê? Porque sou gay, sou mulher, sou homem, sou negro e sou índio. E, sendo tudo isso, não acredito em ninguém.
Na Bienal do Livro, mês passado, Marcelo Crivella, censurou uma ilustração de HQ por trazer a imagem de dois rapazes se beijando. Se “Desenhos para…” chegasse às mãos do prefeito do Rio, qual seria a dedicatória?
Eu chorei de ódio desse cara! Jamais, em toda a minha vida, vou concordar com censuras baseadas em falsas morais ou premissas hipócritas vindas de quem quer que seja. Eu não aceito a censura. Eu me pego furioso e querendo censurar a livre expressão de grupos que pregam o ódio ou aqueles que perseguem e matam os outros que discordam. Quem estudou Hegel sabe que a verdade não existe, mas isso não é, em si, uma verdade. Ah, já ia me esquecendo quanto à dedicatória: “Crivella, vá a merda!”
O que podemos esperar de Gerald Thomas depois de “Dilúvio”, sua última peça montada no Brasil?
Vou apresentar “Gastrointestinal Prayer”, em Copenhagen, nos próximos dias. Ao longo dos anos, tenho escrito essa peça sobre uma mulher que come e bebe sozinha, num restaurante de caças, onde os “troféus” na parede são as cabeças caçadas. Ela solta a língua num vômito verborrágico de resistência, dizendo “coisas relevantes ou bobagens“ (uma citação já incluída em “Circo de Rins e Fígados”, de 2005). Para o Brasil, estou escrevendo “Rembrandt Naked and Afraid”, mas ainda estou no início, e não sei se conseguirei financiamento.
Foto: Jair Magri
Alguns desenhos de Gerald: