A vida ficou ainda mais intensa para Almir França, estilista, pedagogo e ativista de direitos humanos. No início de março, quando teve que fechar seu ateliê, na Praça da Bandeira, pensou: “Ou a gente liga a máquina de costura, ou enlouquece”.
Escolheu a primeira opção e começou a pensar na produção de máscaras sustentáveis, feitas de retalhos. No ateliê, funciona também o projeto “Ecomoda”, fundado por Almir, oficialmente, em 2010, mas que nasceu 10 anos antes, quando dava aula para mães que tinham filhos na rua. Hoje está em quatro favelas cariocas (Mangueira, Rocinha, Vidigal e Complexo da Maré) e sete cidades do interior do estado. É muita gente.
Até hoje, o ateliê produziu 10 mil máscaras, feitas pelos alunos e costureiras. Além disso, ele faz um trabalho paralelo: como um dos diretores do grupo Arco-Íris, tem recebido cestas básicas, que já foram distribuídas para 2 mil transexuais. O projeto começou tímido e foi crescendo no boca a boca, com a ajuda de vários cariocas, entre empresários e pessoas físicas.
Na próxima semana, ele estará na Fiocruz, fazendo oficinas pontuais com alguns moradores da Maré, ali próximo, para aprenderem a fazer máscara com reaproveitamento.
A ideia das máscaras veio de imediato com a pandemia?
Não tínhamos muito o que fazer porque, como somos ligados a várias ONGs, pensamos em algo que pudesse aliviar os danos da pandemia. E o que fazemos? Costuramos. Então pensamos em algo que pudéssemos fazer de casa. Quando veio o isolamento, não se pensou muito nas consequências e prevenções; daí, vieram a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde mandando fechar tudo. A princípio, não se podia dizer que o uso da máscara era obrigatório porque, senão, todos iam correr para as farmácias e acabar com o estoque dos profissionais de saúde. Desde o início, começamos a conversar com a Fiocruz para entender os protocolos e até que ponto nossas máscaras eram possíveis. Enquanto escola-projeto, ficamos experimentando, criando modelagens e barreiras, que davam certo.
O projeto cresceu espontaneamente?
Ficamos três semanas testando as máscaras. O Ecomoda já tinha um acervo de retalhos, mas vieram muitas doações de uma rede de amigos através do Facebook, muitas senhorinhas e, depois, estilistas, como o Beto Neves e Isabela Capeto e o produtor Gringo Cardia (da ONG Spetaculu). Não gastamos um tostão com tecido. Pensamos num modelo que pudesse ser feito em casa, de modo fácil, mas acabou crescendo, já que nossos alunos e costureiras estão todos em casa e muitos, sem dinheiro. No início, trocávamos as máscaras por alimentos para montarmos as cestas e doar, mas acabou crescendo, e hoje produzimos 10 mil máscaras. E tudo muito sustentável, com reaproveitamento — nem elástico usamos, apenas as malhas que cortamos de camisetas.
O que acha da monetização das máscaras no mercado?
Não estamos preocupados com a estética porque, no Brasil, tudo vira um grande carnaval, e o momento não é para isso. A máscara não pode ser uma peça do guarda-roupa para combinar com o modelo Chanel ou Yves Saint Laurent; têm vários blogueiros vendendo, e isso é uma loucura. O momento é de lutar pelo “anticomprismo”, e não estou falando de consumismo e a favor do meio ambiente. Existe uma contaminação no mundo, onde nenhum poder tem controle sobre nada, então, é justamente agora que vou pra rua comprar tecido? Não é desse lugar que estamos falando. A gente critica o sistema e acaba fazendo tudo igual. As pessoas estão morrendo, e tudo que uma técnica de enfermagem quer, neste momento, é que a gente não use a máscara dela para poder atender mais pessoas. Vou me preocupar com a etnia da máscara, a estampa de futebol? Oi? No mundo, eu não posso ser apenas um estilista que entende de moda – eu tenho que pensar na saúde, na biologia, no corpo, no meio ambiente.
O que esse projeto tem trazido pra você?
Está dando certo. Esta semana, aconteceram duas coisas: ganhamos um edital da fabricante Elgin e recebemos 30 máquinas de costura, ou seja, eu vou poder colocar 30 pessoas que estão passando necessidade, direto de suas casas, costurando no processo do isolamento. E vamos estar dentro da Fiocruz, a partir desta semana, fazendo oficinas pontuais com alguns moradores do Complexo da Maré, que fica ali perto, para eles aprenderem a fazer máscaras com reaproveitamento de tecido, para serem distribuídas na empresa, que é gigante. Para isso, elas vão receber uma bolsa. Então, é muito legal ver o projeto num campo mais macro.
E tem sentido o retorno das pessoas que ajuda no projeto?
Sim, porque essas pessoas já estavam entrando em depressão, porque elas já vivem uma rotina de violência, e numa série opressões e limitações sociais. Daí vem a pandemia para reforçar essas situações limítrofes para o pobre que, neste exato momento, ficou se sentindo mais miserável já que a comunicação sobre o que está acontecendo demorou muito a chegar até eles. Temos poucas ações governamentais sobre a pandemia. Tem pessoas dessas favelas que ainda não estavam usando máscaras porque não sabiam, ou não têm condições de comprar álcool em gel, nem têm água para lavar as mãos. Atualmente, o grande meio de comunicação são as redes sociais, mas poucos pobres acessam. Para as pessoas que estão envolvidas no processo das confecções, foi de extrema importância porque as deixou vivas. Ninguém do nosso círculo de alunos e profissionais foi contaminado pela Covid-19, nenhuma internação, e todos estão muito produtivos.
E o projeto das cestas para os LGBTQI+?
As redes de solidariedade vão se falando, e as doações têm chegado ao ateliê. Vamos entregar mais 1.300 cestas ainda este mês. Dentro do Ecomoda, temos um braço em parceria com o Arco-Íris e fizemos uma oficina de corte e costura com a população trans, que também precisa de renda na pandemia. Criamos um programa paralelo para que elas se envolvessem na confecção de máscaras, sem precisar implorar ao governo, ao estado, que é quem deveria estar fazendo por elas.