Conheci Pierre Cardin quando recebi um convite para desenhar sua retrospectiva em São Paulo, uma megaexposição na FAAP. Minha maior motivação era entender sua personalidade. Como diretor de cinema e TV, é importante construir personagens a partir de pessoas reais. Achei que ele seria uma referência e tanto. Mãos à obra… como um contador de história que sou, desenhei uma instalação toda em papel com silhuetas de figuras nuas, onde as roupas ficavam escondidas atrás das paredes de cartão amassado. À medida que se caminhava, elas surgiam coloridas para o visitante. A embaixatriz francesa ficou em pânico: “Você está construindo uma obra sua e escondendo a criação do Cardin!” Alguns minutos depois, ele apareceu; olhou por alguns segundos e disse; “Isso é exatamente o meu processo criativo… de silhuetas grafitadas para minhas roupas que são esculturas coloridas.”
Ficamos amigos, e ele me convidou para desenhar a versão francesa em Paris, em 1997. Comecei a entender sua personalidade. Nesse tempo, já com idade avançada, ficou clara sua eterna preocupação com a modernidade e seu raro faro comercial. Assim como foi expulso da Academia de Alta Costura Francesa por ter criado modelos de roupa acessíveis a todos (o prêt à porter que todos seguiriam mais tarde), lembro-me de uma reunião em que praticamente demitiu seu diretor comercial por ter permitido assinar seu nome em colchões de dormir, vendidos no Brasil. No auge da discussão, parou para olhar os números contábeis muito positivos; de repente, perguntou: “Será que podemos ampliar essa operação na Ásia?”
Assim era o homem. Em outra passagem, prometeu a um comprador chinês que não cobraria royalties sobre o desenho dos uniformes militares contanto que fornecesse os botões. Vocês já contaram a enorme quantidade de botões que fazem parte das túnicas chinesas?
Nos anos que se passaram, todos os designers de moda franceses venderam suas marcas para grandes bancos, pressionados por maus resultados, menos ele. Independentemente de gosto, é inegável seu sucesso comercial e sua leitura correta dos hábitos e desejos de consumo.
A exposição em Paris, em um espaço de 5 mil metros quadrados no Espace Cardin, foi amplamente reconhecida pela crítica e indústria. Estreitamos relações até o dia em que manifestei o desejo de voltar à minha vocação no cinema e na televisão. Não me perdoou. Na minha partida, convidou-me para jantar no Maxim’s (de sua propriedade) e carinhosamente recusou meu convite para ser assunto de um documentário. Imaginei que talvez por uma certa “vingança”, já que todo gênio é também genioso. Foi a última vez que o vi.
Agradeço ao acaso por ter podido entender sua personalidade, e alguns personagens foram realmente construídos a partir da sua “silhueta grafitada”. Vida longa Pierre Cardin! Você merece.
Ricardo Nauenberg é diretor da Indústria Imaginária, com produções em várias plataformas: na televisão, no cinema e na Internet. Dirigiu longas-metragens, séries, novelas e musicais para TV. Na área musical, produziu e dirigiu a série “Audiorretrato”, com as maiores estrelas da MPB e White Black and Blues com BB King. Foi diretor de transmissão do Rock in Rio e do Free Jazz Festival.