A cannabis medicinal — gênero da planta da qual a maconha faz parte — é uma realidade comprovada cientificamente no tratamento de diferentes doenças (epilepsia, esclerose múltipla, glaucoma, depressão, autismo, bruxismo etc.); no entanto, o tema no Brasil ainda é polêmico, esbarrando em burocracias e preconceito, com debatedores favoráveis e contrários. No âmbito das regras regulatórias, em 2014 a Justiça liberou a importação do Canabidiol (CBD) para tratar um caso específico e conhecido nacionalmente: o de Anny, de 5 anos, que tem uma doença rara e epilepsia grave, e que, depois do CBD, apresentou melhoras nas crises. O tema, porém, só entrou na agenda regulatória da Anvisa na edição 2017-2020.
Atualmente, a Anvisa trabalha com três possibilidades: a importação excepcional de produtos derivados de Cannabis por pessoa física; a autorização sanitária de produtos Cannabis; e o registro como medicamento.
No entanto, não faltam profissionais que defendem o medicamento, como o neurologista Luís Otávio Caboclo, nome destacado nesta área, doutor em Neurologia e Neurociências, parceiro de pesquisa do Instituto de Neurologia da University College London, coordenador de Neurofisiologia Clínica do Hospital Albert Einstein e diretor da Endogen, “healthtech” de produtos de cannabis medicinal e nutrição.
A coluna conversou com o Dr. Caboclo sobre o preconceito e a falta de conhecimento por parte de um grupo de profissionais do setor de saúde. Na última semana, ele participou da 2ª edição da “Medical Cannabis Fair”, em São Paulo, e acaba de voltar do Congresso da Academia Americana de Neurologia, em Boston.
Para atualizar os dados, segundo a Anvisa, foram 850 autorizações para importação de medicamentos em 2015, quando a prática passou a ser permitida no Brasil. Desde então, o número cresceu 93%, chegando ao total de 79.995 novos pacientes autorizados em 2022 — quase o dobro do ano anterior, quando foram 40.070 liberações.
Qual a diferença entre cannabis medicinal e a maconha recreativa? Ou entre CBD e THC?
Cannabis medicinal não deve ser confundida com o uso recreativo ou adulto da maconha. A maconha é uma variedade da Cannabis sativa com alto teor de THC, que promove os efeitos psicoativos, associados ao uso recreativo; por outro lado, a cannabis medicinal é indicada no tratamento de diversas condições médicas. Na maioria dos casos em que a cannabis medicinal é indicada, são utilizados produtos com alta concentração de canabidiol (CBD), com ou sem o uso associado do THC, geralmente em concentrações mais baixas. Portanto, quando o uso da cannabis medicinal é indicado, não se buscam os efeitos psicoativos da cannabis, e sim os efeitos terapêuticos. Devido ao nosso posicionamento, evitamos abordar o uso recreativo, uma vez que trabalhamos com produtos de Cannabis medicinal, com grau farmacêutico e de prescrição médica.
E as diferenças entre a cannabis in natura para uso medicinal e quaisquer outros derivados?
Os produtos derivados da cannabis utilizados para fins medicinais devem seguir padrões estabelecidos para o controle de produtos farmacêuticos. Esses produtos podem ser fitoterápicos, quando é utilizado um extrato integral da planta, ou fitofármacos, quando o extrato da planta é processado no sentido de isolar ou purificar uma ou mais das substâncias contidas na planta.
Em 2014, uma decisão da Justiça abriu caminho para que hoje o uso medicinal da cannabis seja uma realidade no País, ainda que esbarre em desafios. Como está hoje? Os debates têm avançado pouco por causa de preconceitos?
Abaixo (2º gráfico), tem uma linha do tempo com as resoluções da Anvisa, as famosas RDCs. É um resumo muito interessante para entender o momento em que estamos, do ponto de vista regulatório. Acredito que o trabalho de educação médica, além do grande número de notícias que chegam para o público leigo, está fazendo com que a sociedade esteja mais interessada no assunto. Ainda há barreiras e resistências, sim, mas percebemos que, todos os meses, a procura tem crescido bastante, seja pelo assunto, seja pela busca para acesso ao tratamento. Um dos grandes pontos que poderiam ampliar e facilitar o acesso ao tratamento seria se, na revisão da RDC 327, houvesse a mudança de forma de prescrição, ou seja, que o receituário azul deixasse de ser obrigatório e que apenas com um receituário simples fosse necessário para que as farmácias e drogarias pudessem dispensar o produto. A despeito de todas as dificuldades, os debates têm avançado de forma consistente. O custo ainda é alto, seja dos produtos vendidos em farmácia, seja dos produtos importados; entretanto, o aumento da oferta de produtos derivados de cannabis bem como a simplificação da legislação tendem a melhorar o acesso de mais pacientes a esses produtos.
Qual o maior entrave no Brasil?
Acredito que, como disse, se fosse permitido comprar os produtos à base de Cannabis medicinal, com receituário simples, o acesso ao tratamento seria ampliado. Isso poderia ajudar também na produção de matérias-primas no Brasil para fins medicinais, ampliação das formas farmacêuticas (hoje, só pode ser comercializado nas farmácias óleos e extratos). Acredito também que o trabalho de fomentar o conhecimento para os profissionais prescritores, com educação continuada, seria muito importante para diminuir os entraves ou barreiras de acesso. Outro ponto seria a cobertura do acesso ao tratamento via SUS ou reembolso ao tratamento pelas seguradoras (planos de saúde). O maior entrave é a regulamentação dos produtos derivados de cannabis. Podemos dizer que a evolução da legislação não acompanhou a evolução científica — os processos ainda são muito lentos e burocratizados.
Como as substâncias extraídas da planta da maconha são apresentadas para o uso terapêutico?
Há diversos processos para extração das substâncias. No nosso caso, buscamos um parceiro estratégico na Suíça, que extrai todos os componentes da planta, preservando as características e componentes da planta, com padrões internacionais de qualidade, com grau farmacêutico na produção do produto.
O Brasil proíbe o cultivo, mas pesquisadores e empresas de cannabis argumentam que o clima tropical poderia ser o ideal para o cultivo da planta, tornando o País um dos principais fornecedores mundiais. O que acha disso? É a favor?
Tudo que for benéfico para diminuir a distância entre o paciente e o tratamento é positivo. No entanto, é fundamental ter uma legislação que colabore com a manutenção de um padrão de qualidade, para termos a segurança de que a matéria-prima de alta qualidade será usada. Entendo que o debate sobre o cultivo deve avançar, pois não faz sentido que ele seja proibido. O uso medicinal não deve ser confundido com o uso adulto ou recreativo. Vale lembrar que, além do uso medicinal, a cannabis também pode ser utilizada na indústria têxtil: o cânhamo pode ser utilizado para a fabricação de fibras, com finalidades diversas.
A decisão está travada há anos no STJ. Acredita que essa liberação está próxima?
É muito difícil antever como será essa discussão nos próximos anos; o debate atual é mais político do que médico ou técnico. Portanto, a liberação do cultivo vai depender de um debate em nível nacional, que deve envolver, além de médicos e outros profissionais técnicos, representantes da sociedade e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas deve avançar baseado nas melhores evidências científicas, ficando assim menos dependente do contexto político.
Pacientes têm resistência?
De forma geral, encontramos pouca resistência dos pacientes já que é de interesse deles que todas as terapias possíveis estejam disponíveis e acessíveis. Por outro lado, uma parte significativa dos médicos ainda tem resistência ao uso da cannabis; isso vem do desconhecimento bem como do preconceito da ideia do uso recreativo. Uma coisa é certa: só a educação médica e o acesso à informação de alta qualidade científica podem melhorar o nível do debate, impedir os preconceitos e reduzir a resistência a uma opção terapêutica que pode beneficiar inúmeros pacientes.
O senhor acaba de voltar de um congresso da Academia Americana de Neurologia. O que viu por lá, e em que termos o Brasil está atrasado?
Numa das sessões do congresso americano, o professor Vincenzo Di Marzo, da Universidade Laval (Canadá), uma das maiores autoridades mundiais no assunto, fez uma ampla revisão sobre o sistema endocanabinoide e os mecanismos de ação dos produtos derivados da cannabis. Esperamos que o Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal siga na mesma linha, debatendo as evidências científicas bem como os aspectos referentes ao acesso a esses produtos no Brasil.
Quais as indicações para o uso de cannabis? A jornalista Renata Capucci detalhou o uso do medicamento depois do diagnóstico de Parkinson. Como saber quem é o/a paciente ideal para o uso da cannabis?
Existem níveis de evidência diferentes para suportar esse uso nessas diferentes condições. Na epilepsia, por exemplo, o uso em pacientes com crises refratárias é absolutamente bem estabelecido. Em outras condições — e podemos citar a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson e o transtorno do espectro autista, entre outros —, as evidências são menos robustas, e o uso é baseado principalmente em estudos preliminares e na opinião de especialistas. Como é o caso com qualquer outra modalidade terapêutica, o uso dos produtos derivados de cannabis deve ser discutido entre o paciente e seu médico.
O que viu nesse tempo de profissão de evolução com o uso da cannabis?
Sem dúvida, houve um enorme avanço nessa área. Há menos de dez anos, o uso da cannabis era proibido por lei e, hoje, chegamos ao debate nas esferas científica e acadêmica, quando vários produtos estão disponíveis na farmácia, ou para importação, e quando são realizados congressos médicos dedicados a esse tema.
Por Dani Barbi