Daniel Gonzaga vive entre Gonzagão e Gonzaguinha, o avô e o pai, mas tem personalidade e talento próprios. Dono de uma voz tranquila, quando fala e quando canta, é também um homem em múltiplas funções, seja por resistência, seja por paixão. Multi-instumentista, produtor musical, compositor, cantor, ator, roteirista, diretor de TV, dono de estúdio, de um selo (Celulla) etc., dá pra ver que, aos 45 anos, não quer trégua.
Dentre as novidades, ele destaca um show em homenagem aos 30 anos sem Luiz Gonzaga (1912-1989), “Forró de Gonzaga — Gonzagão 30 anos”, no dia 24 de maio, no Caiçara, bar na Ilha da Gigoia, Barra, com uma “big band” que toca Gonzagão meio-baião-meio-rock com uma miniorquestra de 10 integrantes e convidados, como Marcus Lucenna e Marcelo Mimoso, protagonista do musical “Gonzagão — A Lenda”, em 2016.
E vem aí o 7º lançamento da carreira (depois de seis CDs), um DVD com nome provisório de “Daniel Gonzaga”, que sai entre agosto e setembro. Há 26 anos, ele também está à frente da produtora Moleque Produções Artísticas, fundada pelo pai pouco antes do trágico acidente, em 1991. Uma de suas paixões na produtora é a webtv Rhytmica, feita com recursos próprios, em constante produção, com uma grade de sete programas, todos voltados para a cultura, que se renovam a cada 15 dias.Ele pretende, também, rodar com o monólogo “Toda noite na varanda”, de sua autoria, contando a história da sua vida, em formato de teatro de rua. Tem, ainda, um CD em produção: “A vida está louca!”
Como vai ser o show em homenagem ao seu avô?
Reuni uma miniorquestra porque Gonzagão é sinfônico, e sinfônico é rock’n’roll. Na minha carreira, gosto de agregar ritmos; sou Gonzagão, mas sou pop, misturo xote com blues. A música nordestina tem tudo a ver com rock’n’roll, a exemplo de Zé Ramalho, Alceu Valença… Mas o maior roqueiro de todos é Luiz Gonzaga. Baião é rock, é música de cowboy, e a banda vai ter alguns núcleos: o forró com zabumba, triângulo e sanfona; o rock com bateria, baixo e guitarra; e os metais junto com a sanfona, reunindo meu sangue, que é o Gonzaga, e meu tesão, que é o rock. No dia, vamos filmar um clipe para fazer um projeto junino que vai ficar para sempre. São 30 anos sem Gonzagão no dia 2 de agosto, mas o projeto vai até o fim do ano e, depois, permanente.
A cultura brasileira é essencial na sua vida?
Eu faço parte do Fórum Nacional de Forró; esse show vai ser uma grande brincadeira. Temos que estar juntos neste momento que vivemos no Brasil, espalhar cultura, se proteger, andar em matilha, como nesse show, que é pra isso, divertir, tomar uma cerveja, suar um pouquinho, dançar um forró, encontrar os amigos, um clima gostoso como o Gonzagão merece.
Quando você teve a noção de ser um Gonzaga, essa herança forte de pai e avô?
Eu comecei a enxergar a música aos 10 anos, quando ouvi ‘Geração Coca-Cola’ (Legião Urbana); daí pensei ‘isso é música, não o que o meu pai faz’. Meu avô? Porra nenhuma. Legião é que é música. Aí comecei a escrever. Daí o meu pai falava ‘poxa, você tem que ouvir música de verdade, para de ouvir besteira’. Com o tempo, logicamente, fui vendo que os shows de meu pai ficavam bem cheios e, aos poucos, comecei a gostar, as letras e melodias me emocionavam, assim como as do Chico. Quando eu tinha 13 anos, fui trabalhar com ele. Também rolou outra parada: aos 7 anos, fui para Exu (Pernambuco, cidade natal do avô). Imagina um garoto nascido na Tijuca, morando em Ipanema, aquilo me deu uma mexida. Vi meu avô no habitat e achei muito mais legal do que meu pai, porque o negócio da zabumba era forte — o ritmo e o jeito como ele tocava eram totalmente diferentes, aquela roupa de couro, falando alto e com olho de vidro, a bolsa cheia de dinheiro, todo mundo querendo falar com ele, uma loucura. Mas comecei a acompanhar meu pai em turnê pelo Brasil, ouvir jazz, blues; no fim, meu avô era um músico, não o Gonzagão. Logo depois que comecei a trabalhar com meu pai, ele morreu; eu tinha 16 anos. Sabia que meu avô era grande, mas, até os 25 anos, a admiração aumentou e, até hoje, eu descubro coisas dele. Gonzagão está ao lado do Saci e da Mula sem Cabeça. Ele é folclore nacional, é música, arte, cultura.
Mas você conviveu muito com seu avô?
Sim, ele me deu força quando comecei. Ele falava coisas, era um cara duro para quem era um garoto zona sul do Rio, era uma realidade que batia na porta. Mas foi importantíssimo.
O que você tem do Gonzagão?
Fisicamente me pareço muito mais com meu bisavô Januário, mas também muito com meu pai, no sentido do humor, da voz e fisicamente, mas ritmicamente vou mais para o caminho do meu avô.
Algum dia se preocupou com rótulos, comparações, críticas?
Nunca, acho isso bem chato — tanto que existem dois tipos de pessoas que vão aos meus shows: as que acham que só canto Gonzaguinha e ficam putas porque não canto, e as que não vão porque acham que eu só canto Gonzaguinha. Ou seja, todo mundo é insatisfeito comigo. E eu não tenho a menor culpa.
Por que você decidiu não cantar Gonzaguinha?
Já me ofereceram muito dinheiro, mas eu cantei meu pai até onde eu quis. Não vou colocar a minha criatividade, credibilidade e vontade na roda — é a minha vida. Eu optei por me ‘fuder’ todinho por não cantar meu pai e ficar pobre. Então, quando me convidam para cantar o repertório do meu pai, evito.
E o DVD “Daniel Gonzaga”?
É uma reapresentação do Daniel Gonzaga. Todo mundo cobra que eu poderia estar com mais sucesso depois desse tempo de carreira, que está demorando, mas a minha imagem é o seguinte: você sabe o que é um berne? Ele entra na tua pele e sai de tempos em tempos para respirar. O que as pessoas fazem? Colocam um pedaço de bacon e ele atravessa o bacon para respirar e pronto, pegam ele. O Gonzaguinha e o Gonzagão são duas camadas grossas de bacon. Eu tenho que atravessar essas camadas, e isso demora. Eu podia fazer de inúmeras maneiras, mas quero fazer da minha porque sou teimoso. Neste momento, estou atravessando as fatias de bacon. Meu trabalho é legal, tem conteúdo, e isso é impagável. Se eu fosse cover do meu pai, não estaria feliz, e cover do meu avô ninguém é. Não tenho nem barriga nem tamanho para ser Luiz Gonzaga.
E a peça?
Entendi que as pessoas acham que eu sou meu pai. Elas me chamam de outro nome, elas falam que estiveram comigo em lugares que eu nunca estive. O monólogo surgiu para explicar quem sou eu, e é feito na rua, com cenário simples. Vou contando a minha história sem dizer quem são meu pai ou avô. Um dia, viro um disco em cima da mesa e mostro meu pai; aí é que o público começa a entender. Vou falando da felicidade que era isso e, de repente, de um jeito cínico, quando estava muito feliz, meu pai morre. De uma alegria intensa a um mundo chocante.
O que é ser um artista independente no Brasil?
Eu acho que temos que fazer cultura. Se você tem condição, no meu caso, sou psicopata, juntei equipamento a vida inteira, pego isso e faço cultura. Vou para rua fazer cultura. Não faço por opção; nasci fazendo cultura, é uma compreensão de mundo. As pessoas têm dividido o mundo entre esquerda e direita; eu divido entre humanista e não humanista, uma visão de construção de cultura e preservação. É fazer de qualquer jeito, mesmo que não ganhe dinheiro. Quem é que tem condição de largar o seu orçamento, que já está apertado, para comprar um CD? E hoje está tudo na Internet. É um repasse ridículo para o compositor. Os grandes artistas estão esquecidos, e o que eu faço? Sou tão masoquista que escolhi trabalhar com cultura popular e música instrumental. Tenho um projeto chamado Biblioteca de Ritmos, que é um site de manutenção de ritmos brasileiros.
De todas essas mídias que você faz, qual prefere?
A TV é um vício, além de cantar e tocar. A TV está ganhando forma, é uma grade grande, estou apresentando o programa ‘Mastigados’, de entrevistas, mas gosto mesmo é de ser editor-chefe, de filmar – todas as vinhetas são nossas, nem posso começar a falar, senão choro de emoção. É vídeo, música e tecnologia, que eu adoro. A Internet está cada vez melhor; daqui a pouco, vai estar no controle. Ninguém mais vai ler. A pessoa que é burra, idiota, gosta de ver o quê? Televisão. Sacou? Agora a gente vai fazer uma novela baseada em música, novela de rádio na TV. Tenho TOC, então tudo tem que ficar bom, do meu jeito.