Quem nunca dançou “Olhos Coloridos” na voz de Sandra de Sá? Mas, por trás de uma balada boa, existe uma história de racismo. Autor da música, Macau a compôs na década de 1970, depois de ser preso injustamente pela Polícia Militar do Rio em uma exposição de escolas públicas no Estádio de Remo da Lagoa. A canção — cujo trecho diz “Você ri da minha roupa, você ri do meu cabelo, você ri da minha pele, você ri do meu sorriso. A verdade é que você tem sangue crioulo, tem cabelo duro, sarará crioulo…” — é considerada um símbolo do orgulho negro no Brasil. “É um hino do povo brasileiro. Afinal de contas, quem é quem no povo brasileiro? Quem pode definir-se como uma coisa, e não outra?”, disse Sandra.
Novembro é o mês da Consciência Negra, comemorado nesta sexta (20/11), e, com ele, o discurso atual e aberto sobre a luta antirracista, cujo combate é tentado e tentado e tentado…
Não à toa, Sandra de Sá é considerada a “diva do soul brasileiro”, comemorando 40 anos de carreira e 65 de idade (em 27 de agosto) neste ano pandêmico, além de ter lançado o selo The Sá Música. E mesmo sendo tão representativa na música brasileira, ganhou um presente não muito agradável: Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, anunciou a exclusão de alguns nomes da lista de personagens importantes para a instituição, como o de Sandra, além de Gilberto Gil, Elza Soares, Zezé Motta, Martinho da Vila e Milton Nascimento, porque ali só haveria homenagens póstumas.
Uma das músicas brasileiras mais conhecidas, “Olhos coloridos”, sucesso na sua voz desde o começo dos anos 1980, deve-se ao racismo. A canção é considerada um símbolo do orgulho negro no Brasil. O que ela significa pra você e quando canta o que lembra ou pensa?
Canto “Olhos” há 40 anos, ininterruptamente, em todo lugar a que vou, e é praticamente obrigatório. Se vou à casa de alguém, tenho que cantar; quando chego a um bar, de repente neguinho já canta — em qualquer lugar, em qualquer ambiente, ou no teatro com as vans com idosos, ou no rock’n’roll. Recebo, por dia, no mínimo, umas cinco versões de “Olhos”, uns cantando em samba; outros, em reggae, funk, muita gente… Essa música não tem idade, nem cor – todos cantam, seja branco, preto, índio, japonês… É uma parada de liberdade, e não fica só no gueto racial, do preconceito. É um sentimento forte, um chamado de consciência. É por isso que eu falo: não é só a consciência negra, é consciência e ponto. E realmente essa música é um hino. Quando canto, olho para o público, e todo mundo tá junto, dança, ama a energia… É difícil de explicar por que passa uma verdade muito grande. Tudo que o Macau passou, quando foi preso, era para ele sair revoltado, pegar uma arma, sei lá, mas nem isso ele fez; ele compôs. Essa foi a sua arma.
Você criou a expressão “música preta brasileira”. Quem são seus ídolos pretos? Acredita que, mais do que nunca, como temos vários exemplos nos últimos tempos, tanto de intolerância racial, que a luta contra o racismo é essencial em todos os âmbitos?
A luta é essencial de todas as formas, mas eu acho que o lance está melhorando, as pessoas estão mais conscientes, até pela informação, globalização, tecnologia. Só temos que ter cuidado para não misturar as ondas, porque, no Brasil, temos que ter a consciência da nossa cultura, o que somos nós, quem somos nós. Porra, tenho um monte de ídolos pretos! Um que eu sempre achei um cara incrível é o Erlon Chaves, que ninguém fala. E a Banda Veneno, o Simonal, o Jorge Ben Jor, Dolores Duran, Elza Soares. Isso é a cultura: são pretos incríveis. Mansueto, Chocolate, cara, Blackout, sabe? Tem Tim Maia, Paulo Moura, fora os pretos de alma, que a gente tem que reconhecer. Tem um amigão que chamo de “negão”, o Nelson Motta, Nelsinho negão, o Guto Graça Mello, o Lincoln Olivetti, o Otto, Pedro Luis…. Estou falando da mistura da cor, da raça. Música preta brasileira é essa paudurescência que a nossa arte tem, esse suingue que é o preto. Temos que lutar por essa cultura, essa miscelânea; temos que sobrepor o suingue, a força do preto. Se não fosse nossa força, a gente não seria caçado, escondido massacrado. Eles estão tentando levar a autoestima do preto para o fundo do poço, mas não conseguem mais pela nossa consciência. Sabendo de nós, nos respeitarmos. Essa coisa de racismo e preconceito é medo de nós. Resumindo, é essencial a luta em todos os âmbitos possíveis e inimagináveis.
O racismo era pior lá atrás ou agora, já que, passadas décadas, o assunto está mais vivo do que nunca? Você, como artista, chegou a sofrer algum tipo de preconceito, talvez em dobro, por ser preta e gay?
Não vou muito nessa de o racismo ser pior agora ou ontem. Racismo é racismo. O que pode diferenciar um período do outro é que agora as pessoas estão mais conscientes, mais informadas, e o preto percebe que pode estar em qualquer lugar e fazer o que quiser. Meu pai é um cara que sempre quis ser comissário de bordo. Ele passou, mas, quando foi lá sacramentar, não podia porque era preto. Foi ele e um amigo, o Edinho, que deu uma certa pirada, e não conseguiu fazer mais nada da vida. Aí virou doença. Meu pai nunca foi um revoltado, e é isso que carrego na minha mente. Claro, já sofri racismo, e até sem perceber, mas não vou dar atenção à chuva no meu ouvido. É por isso que estou aqui, até hoje. Já sofri, mas não mais. Se rolar racismo, claro, você tem mais é que gritar. Acho também que tem a parada da crioleba se respeitar, se impor, porque, se baixarmos a cabeça, porra, aí não rola. Não podemos ser submissos, alimentar o racismo. Esse é que tem que ser o pensamento da crioleba. Eu sou preta, gorda e gay, sacou? E venho de um subúrbio da Zona Norte, e estou aqui. Meu lema é “para de correr atrás e chega junto”.
Existe uma teoria de que, quando as minorias deixarem de ser tratadas como minoria, aí é que está a “cura” de todo preconceito do mundo. O que acha disso?
Quem é minoria? Assim que percebermos que somos maioria, isso vai acabar. Todos juntos, negros, mulheres, LGBT+… O que existe é uma minoria que tem uma capacidade de controlar, de manipular uma minoria. Pra mim, minoria é quem é racista, preconceituoso. Se pararmos de correr atrás e chegarmos junto, isso muda. Não tem como uma minoria sufocar uma maioria.
Você lançou um selo musical — que tipo de artista pretende “representar”, o que te encanta atualmente, o que você não gosta de jeito nenhum… E também está preparando um novo álbum, conta aí.
Eu e minha mulher, Simone (Malafaia), e Carla Bastos, sócia, estamos lançando a The Sá Música e, antes de qualquer parada, está sendo o berço da música preta brasileira. Tem crioleba de todas as cores. E é isso: o grande lance é mostrar os artistas novos que estão batendo cabeça por aí. Cantores incríveis que passam a vida inteira nos bares, cantam por quatro horas, levam e tiram os equipamentos, para ganhar uma parte ínfima do couvert artístico, e são altamente mal-informados sobre direito autoral, sobre o trabalho que podem fazer nas mídias sociais. Na The Sá, vamos informar o artista de tudo que ele é capaz de fazer com workshops de mídias sociais, direitos autorais etc. A gente não está só lançando, mas capacitando artistas para que saibam da sua gestão e comandem sua carreira e empreendam. Tem soul, alma, funk, tem geral, é música preta brasileira. Nos workshops, temos também inteligência emocional. Todas as empresas deveriam ter, em todas as áreas, um departamento para cuidar das pessoas e, à hora que começar, vamos ter um grande salto na nossa evolução.
Como carioca, flamenguista doente, faça algum pedido ao próximo prefeito do Rio e ao novo técnico, o Rogério Ceni (rsrsrs)…
Carioca sim, mas flamenguista doente, não; doente são os outros. Eu sou rubro-negra ensandecida, apaixonada, piradaça. Vou fazer um pedido ao prefeito Eduardo Paes (rsrsrs): que ele cuide do Rio como um carioca apaixonado, que conhece a cidade, os cariocas, dando condições de vida aos moradores e olhe pela arte, porque somos um Estado, um município cultural. Tem que cuidar das lonas culturais, e todas deveriam virar arena, ter um bom som, bons equipamentos para essa galera, e tem que passar um rolo compressor em cima da indústria da anticultura. Nosso prefeito não vai entrar nessa engrenagem da anticultura. Para o Rogério Ceni, pô, treina muito finalização, bater pênalti, falta, estamos fazendo pouco gol de falta… essas paradas. Vamos treinar e cuidar das cabecinhas dessa criançada que tá vindo aí da base também.
É Dia da Consciência Negra. A data tem força de mudança?
Não sei até que ponto as datas têm força de mudança; sinto mais uma força comercial. Mas eu acho que dia 20 é Dia da Consciência e ponto. E temos que estar 50 mil horas por dia alertas, ligados, respeitar e se cuidar para chegar aonde merecemos. Podemos comemorar, mas vamos ter a consciência todo santo dia.
Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, anunciou a exclusão da relação de nomes da lista, como você, além de Gilberto Gil, Elza Soares, Zezé Motta, Martinho da Vila e Milton Nascimento. O que acha disso?
Gente, não sei como, nem quando ou por que esse moço está no comando. Um cara que tem desrespeitado toda uma luta consciente, ferindo pessoas, atacando, agredindo. Esse cara tem que ser internado, simples assim.