Enquanto o mundo embarcava numa onda quase 100% digital, Carlos Burle, 54, resolveu fazer o contrário. Pouco antes de o coronavírus chegar pra mexer com tudo, e depois da aposentadoria das competições (aos 50 anos), o bicampeão mundial de ondas gigantes ficou à deriva, com uma expertise dos 40 anos de carreira e sem um plano muito ambicioso. Ele atua como técnico de nomes como Lucas Chumbo e Pedro Scooby, além de professor de surfe e palestrante. Com a pandemia, o projeto de um contato direto com as pessoas, natureza, esporte, alimentação saudável e práticas sustentáveis cresceu. Assim nasceu o “Burle Experience”, a princípio, como um quiosque na Barra, com inauguração na quarta (27/10), para todas as idades e ao ar livre.
O quiosque tem um varandão “pé na areia”, design projetado com madeiras com certificação FSC, espaço para escritório, uma parede cheia de memórias mostrando a vida do atleta e um menu de gastronomia saudável.
Como o espírito surfista continua livre por natureza, Burle vai passar longe das finanças e da parte burocrática, e mais na ação e em projetos sociais. Para isso, ele tem três sócios investidores e uma equipe de 10 pessoas no operacional e mais de 20 instrutores de surfe, SUP (stand up paddle), Tow-in (quando o surfista é rebocado do mar por um jet ski), canoagem, natação, treinamento funcional, meditação e ioga, além de colônia de férias, gestão de projetos esportivos e eventos para empresas.
Vai funcionar também o projeto Surf Habilitar — proposta terapêutica através da prática do surf para crianças com limitações; e o Eco Amigos, de capacitação de jovens em suas comunidades.
Podemos dizer que o nome Carlos Burle virou um negócio?
Sinto que essa foi uma evolução natural do meu estilo de viver. Até a profissão que eu escolhi tem ferramentas para eu estar perto dos elementos de que gosto. Meu sonho nunca foi ser surfista profissional, mas ter qualidade de vida. A princípio, queria estar perto da natureza, ter liberdade, saúde, cuidar da alimentação, e não existia profissão na minha época que oferecia isso. Em 1980, aos 12/13 anos, eu passeava na praia de Boa Viagem (Recife), quando vi quatro garotos carregando pranchas, bronzeados e coloridos. Aquilo ali foi a imagem da liberdade, de rebeldia, contracultura – sempre achei a sociedade muito quadrada, preconceituosa, hipócrita. O surfe me levava a um ambiente de liberdade. Com 15 anos, comecei a fazer ioga, falava em ser vegetariano. Meu pai me dizia que eu era louco e acabaria empurrando uma carroça e carregando lixo. Fui indo para esse lado; depois entendi que não dava para mudar o mundo, que a mudança vinha de dentro pra fora e comecei a me aprofundar no autoconhecimento.
Quando foi o clique do Burle surfista para o empreendedor?
Sempre ouvi da minha mãe que eu não tinha ambição. Mas a minha paixão era maior, e percebi que meus pais não iam bancar isso. Esse amor por estar perto dos elementos de que eu gosto serviu de contrapartida para me tornar um profissional. Comecei em campeonatos amadores, depois profissionais. Errei no meio do caminho, até descobrir a categoria de ondas grandes. E é um pouco contrária ao meu estilo de vida, sendo que continuo perto da natureza, mas ela traz o questionamento: como me exponho a tanto estresse e risco? Até hoje, já andei três vezes de ambulância; tenho sequelas físicas e emocionais, mas sou uma pessoa realizada. Nos negócios, estou vivendo um momento de ouro, e o ‘Burle Experience’ é um segmento disso tudo. Sempre tive uma cabeça para empreender porque, como eu tive vários altos e baixos na carreira, e estive no fundo do poço, quando me vi bem-sucedido, resolvi abraçar as oportunidades com maturidade.
E como surgiu o ‘Burle Experience’?
Quando me aposentei, sofri um questionamento interno muito grande. Passei a minha vida inteira surfando, e agora o que eu vou fazer? Minha equipe acreditava em produzir conteúdo digital e monetizar. Já tenho minhas mídias, mas, com todo mundo no efeito rebanho, indo para o virtual, a competição seria maior. Aí pensei num negócio com aula de surfe, ioga, meditação, alimentação, sustentabilidade, stand up paddle, canoa havaiana, em fazer coisas que são importantes pra mim sem pensar muito na performance, mas no desenvolvimento do ser humano. Olharam pra mim, me achando louco. Caí de cabeça e veio a pandemia, mas ela só valorizou a gente. Quanto mais a pandemia durasse, mais as pessoas dariam valor à qualidade de vida, a comer bem, a se preocupar com os outros, a ter respeito – tudo isso que é o nosso mantra. E não estamos aqui para questionar a vida, mas para tentar entendê-la.
Mas não é contraditório?
Sim. A minha conversa sempre volta para o começo de tudo isso, porque não vou entrar num ritmo de crescimento só porque temos potencial de transformar isso numa empresa grande. Financeiramente, não quero crescer se perder a essência; temos pessoas interessadas. No Rio, são dois pontos e mais alguns já em negociação para outros estados. Mas a gente precisa crescer organicamente, com coerência.
Você se envolve em tudo?
Na parte de surfe e qualquer atividade aquática, cardápio, sustentabilidade, sim, porque tem meu nome. Agora, na gestão financeira, na burocracia, não. Fico sabendo do que está acontecendo, mas eu não quero me meter. Te confesso que não faço questão de ganhar muito; o importante é que todos os envolvidos ganhem bem.
O que te faz mais feliz?
Os projetos sociais… Aí é que meu olho brilha. Eu sou meio criança ainda. Imagina poder conectar a expertise de atleta com as relações que eu tenho com empresas e levar esses projetos para dentro das comunidades? Queremos fazer uma transformação social maior ainda e deixar um legado positivo para a sociedade. Se o esporte me deu tudo, me sinto responsável em retornar.
Voltando ao surfe: o esporte entrou nas Olimpíadas e trouxe medalhas. Como vê o futuro?
Na minha época, sempre ficávamos atrás dos EUA e Austrália e, mesmo assim, éramos referências. Hoje estamos vivendo um momento incrível: é referência no mundo e ainda trouxemos medalha de ouro. Estava surfando na Fazenda da Grama (Itupeva SP) e entrou uma senhora de 50 anos que tinha começado a surfar ali e estava com um sorriso de orelha a orelha. Isso vai mudar a forma de como nos relacionamos com o esporte, antes tão distante de todos. Para mim, a maior oportunidade de todas é comunicar nossos valores para muito mais gente. A galera precisa de um tesão, algo motivador, um campeão mundial, uma referência. Eu só preciso transmitir meus valores.
Você é do Recife (PE), mas escolheu o Rio pra viver. O que você mais gosta na cidade?
Vim morar aqui definitivamente em 1991. O que eu mais gosto no Rio é da natureza. É impressionante você ter essa geografia das montanhas tão poderosas, com a Mata Atlântica, as lagoas, praias com as areias brancas, o mar verde e azul, as mudanças das estações, sendo que o inverno não é tão frio.
Um sonho?
É poder focar no social, fazer uma transformação positiva em tudo que a gente toca, fazer diferença na vida das pessoas, deixar um legado, ter uma vida tranquila. Não adianta eu querer fazer tudo por todos e não ter a paz interior. Temos que tomar cuidado com o ego senão a gente vive o personagem, e não o ser humano. Não quero acumular matéria. Não acredito em muros, acredito em pontes, em conexões. No dia em que você tiver que andar distante das pessoas, é porque não conseguiu entender o sentido da vida.