A morte da maioria dos seus amigos virou o maior sofrimento para a jornalista e escritora Danuza Leão — não ter contemporâneos era um drama em sua vida. Em dezembro de 2021, foi a vez do Paulo Fernando Marcondes Ferraz, o último no Rio, que a deixou muito abalada; mudou algo dentro dela, tendo ainda a Josephina, em Paris, e a Ilde, em São Paulo.
Naquele dia, perguntei se tinha medo da morte; antes, nunca tinha perguntado por temer que ela associasse à sua idade, assunto que mais odiava no mundo. Sempre que surgia, dizia que isso de publicar a idade veio dos americanos (mudava até a voz ao falar disso). Numa cena recente, na penúltima internação, Felipe Wainer chegou à Clínica São Vicente, na Gávea, enquanto ela parecia dormir, e se apresentou à enfermeira: “Sou seu neto”. Ela ganhou um momento de energia repentina. Como que vindo do além, abriu os olhos e disse com todo vigor: “Vamos parar com isso”.
Mas, naquela hora de tristeza profunda pelo Paulo Fernando, que sofria do mesmo mal que ela, enfisema pulmonar, cabia a pergunta: você tem medo da morte? E ela respondeu: “Morrer não é uma ideia que me seduz. Tenho medo de enfermeiras me tratando, fazendo de mim o que quiserem, eu teria horror àquela intimidade”. Intimidade essa que veio a conviver só recentemente, mas por pouco tempo: começou o drama das internações em abril: de lá pra cá, foram quatro, a última e mais curta, na terça (21/06), de lá saindo seu corpo nesta quinta, para ser cremado na sexta 24/06, com velório entre as 13 e 16h, no Salão Ecumênico 1, Crematório da Penitência.
Seus poucos amigos amavam ouvir suas histórias, fosse com Nara, com Samuel, com Vinicius, com Avedon (das suas fotos feitas por ele, manteve três originais expostos na parede), com Diana Vreeland, de quem tinha enquadrado os elogios; para os seus íntimos, isso não deixava de ser surpreendente. Danuza sempre tratou o que para muitos poderia ser considerado grandioso como a coisa mais normal do mundo; o que para muitos era a coisa mais normal do mundo, como algo grandioso. Muitas dessas histórias contadas por ela existiam em cartas; até o começo da pandemia, eram muitas.
Num dia recente, acordou e disse: “Vou queimar todas as cartas que tenho, antes que eu morra e apareça um editor querendo fazer delas um livro”. Foi pedido que não fizesse isso. De nada adiantou; com ela era assim: decidia num sobressalto e pronto. Não existia argumento que a fizesse mudar de ideia. Foi para as chamas no auge do coronavírus boa parte da Cultura e da História do Brasil, quando também organizou o grande número de matérias sobre si mesma, jogando uma imensidão no lixo, mesmo assim, enchendo muitas gavetas do quarto de hóspedes do seu apartamento da Rua Redentor, que adorava.
Num pós-almoço de conversa longa de domingo, em sua casa, lhe perguntaram se tinha muitos arrependimentos: “Me arrependo, sim. Se tivesse um filme da minha vida na Netflix, botaria uma cruzinha vermelha em cima de muita coisa. Preferia cortar as maluquices”. Como ficaria a parte, por exemplo, quando disse: “É ótimo passar em frente a uma obra e receber um elogio. Sou desse tempo. Acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana, para ser feliz. Viva os homens!”, revoltando muitas feministas? “Ajo de acordo com as circunstâncias. Por que o feminismo diz ter que ser assim, me recuso. Ajo como uma pessoa independente”, disse, se explicando. Numa escala, não se sabe se detestava mais esses assuntos, almoço de mulher ou menu moderno — nunca sabia qual o pior. Ou talvez fosse gente que não bebe, mas fica no bar tomando lugar.
Ela, que tinha bebidas preferidas em cada país, mesmo naqueles que mais amava no Planeta: França e Argentina, o amor era quase o mesmo por Paris e Buenos Aires, onde não deu tempo de voltar no pós-covid. “Deixo tanta coisa passar, penso que elas vão me esperar, elas passam e eu perco. Elas não voltam e eu sofro.” Nesse mesmo dia disse: “Como era boa a vida sem máscara, sem camisinha. A vida já foi mesmo boa.”
Sofreu também com seu voto em Bolsonaro, com o governo tomando o rumo que ela jamais esperou, como publicamente declarado. Isso acabou com ela. Mas teve também uma recente e grande alegria: o documentário “O canto livre de Nara Leão”, sua irmã, do qual não participou, apesar de ter adorado o diretor Renato Terra. E há quem ache ter tido um arrependimento, ainda que não declarado.
Danuza teve três filhos: Samuca (morto em 1984), Pinky e Bruno Wainer; sete netos e seis bisnetos, todos com um laço na arte ou na comunicação, hoje, certamente voltados para memórias, recordações e apreço por terem vindo de uma mulher tão avant garde, diferente de todas do seu tempo, exclusiva com as amizades, mas eclética na vida. Danuza Leão representou a carioquice: hoje é dia de luto.
Foto: Lu Lacerda