Penso na morte todos os dias. Nessa transação solitária, como dizia Ray Bradbury, ela só não costuma acompanhar-me no sono ou nos sonhos. Quando a aurora se manifesta e percebo a realidade surgir – dádiva inacabada no vento que sopra, no corvo que pousa na varanda do apartamento da calle de Antonio Maura, em Madrid, ou ainda é noite no sítio São João, em Teresópolis —, sinto o seu rumor quente segurando carinhosamente minha mão fria. Antevejo, nas temporadas serranas, essa companheira cotidiana em todo canto: nas parcelas de hortaliças indefesas nas tempestades de verão e nas geadas das noites limpas de inverno, em julho e agosto.
Acabara de mudar-me, com Denise, Antonia e Leonardo, do 47, Rue de Liège, nas cercanias da Gare St. Lazare e da Place de l’Europe, para o 6, Square de l’Opéra Louis-Jouvet, em Paris. O inverno de 2003/2004, no Hemisfério Norte, foi rigoroso. Sérgio de Campos Mello, meu amigo e professor de pintura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nos anos 1970, costumava dizer que o novo apartamento era muito grande e que iríamos sentir frio, pois o pé-direito alto e a vastidão dos cômodos haussmanianos eram propícios a gripes agudas e pneumonias graves.
Em 31 de dezembro de 2003, telefonei para meus pais, que estavam no sítio de Teresópolis. Leda me inquiriu se não iria visitá-la com brevidade. Respondi que tinha outros projetos para o inverno e a primavera: queria usufruir o espaço do meu novo ateliê e a enigmática luz do vitral que se projetava em seu interior. Naquele espaço, disse-lhe, pensava preparar algo diferente do que estava produzindo. Ela então replicou: “Não nos veremos mais, pois morrerei antes de sua chegada em abril, com Denise e as crianças, para as férias de Páscoa”. No vigésimo quinto dia de março, atravessamos o Atlântico para comparecermos ao enterro de minha mãe no fétido mausoléu da Academia Brasileira de Letras.
Quase nove anos depois, voltei mais uma vez ao Brasil, a fim de buscar meu pai para aquela que seria sua derradeira travessia do Atlântico, sua última navegação carnal. Acordamos, pai e filho, que veríamos a pintura espanhola do Século de Ouro. Era meu desejo mostrar ao poeta dos homens que não têm voz e fala por eles o que, para mim, era uma pintura transcendente. Intentava que Lêdo percebesse o misticismo que emana dos negros abissais de Ribera e Zurbarán. Em nossa visita ao museu do Prado, preferiu deliciar-se com o grotesco Dos viejos comiendo sopa, de Goya, dizendo-me que se podia achar nessa pequena pintura todo o drama humano.
Leda, mulher de pouca estatura e imensa gana de grandeza, dizia não ter sangue índio, negro ou português: “Sou espanhola: meu sobrenome é Sarmiento”, de origem sefaradita.
Meu nome cristão foi escolhido em homenagem ao poeta espanhol Gonçalo de Berceo – o alagoano Lêdo Ivo talvez seja o mais espanhol dos poetas que não nasceram na Espanha. Ávido leitor de Góngora, Quevedo, Cervantes e Machado, assim como os jovens com os quais mantinha afeto, como Juan Carlos Mestre e Martín López-Vega, ele escolheu, na etapa final de sua vida, publicar seus livros, primeiro, em castelhano.
Como eu, orgulhava-se de ter, em sua carne e constituição de homem e artista, todos os sangues do mundo: dos índios caetés das Alagoas queridas, dos bisavós, dos avós e até, por causa da cor do cabelo enrolado, de uma negra envolta numa clandestina aventura com um antepassado português ou um dos holandeses que ocuparam o estado de Pernambuco e trouxeram aos nativos olhos claros numa miscigenação amorosa e truculenta.
Lêdo morreu em meus braços, no hotel Alfonso XIII, em Sevilha, no dia 23 de dezembro de 2012. Ao chegarmos à capital da Andaluzia, eu insistira para que víssemos Zurbarán, sobretudo los frailes. Não era um homem encorpado. Foi-se como um beija-flor, cujo bico afiado provou das mais distintas culturas. Deixou um legado aos homens que andam na calçada iluminada, quer pelo sol, quer pela lua.
Quem sabe, a poesia e tudo o mais que chamamos de arte continuem a dar algum sentido à nossa ínfima existência, entre o nascimento e a morte, “entre dois nadas”.
Gonçalo Ivo é carioca. Desde a infância, conviveu com pintores, escritores e atores dos mais variados perfis, amigos do seu pai, o escritor Lêdo Ivo. Vive fora do Brasil, principalmente entre Portugal, Espanha e Inglaterra. Em 1999, quando se mudou, com a família, definitivamente, para Paris, fez sua primeira grande individual na Galerie Flak. Em 2012, passou a trabalhar com a Galerie Boulakia, também em Paris. No ano seguinte, partiu para uma nova residência, em Madrid, onde fez, em 2014, uma exposição na Galeria Materna y Herencia, acompanhada da publicação do livro “Contemplaciones”. Nos últimos anos, passou longas temporadas nos Estados Unidos, sobretudo em New York, na Residency Unlimited, e em Bethany, Connecticut, convidado pela Josef and Anni Albers Foundation, no período da covid-19, em 2020. Sua última grande exposição no Rio foi em 2022, no Paço Imperial. Gonçalo e sua mulher, Denise, mantém um sítio em Teresópolis (RJ), que adora, uma das suas fontes de inspiração.