“Somos feitos de poeira estelar”, disse Carl Sagan. E não estava sendo metafórico.
Tudo que você, leitor, vê agora à sua volta – o celular, a cortina, a xícara de café, o cachorro, a caneta e, se estiver diante do espelho, seu próprio corpo – já foi um dia uma supernova, uma nuvem de gás, um meteoro.
Se você reclama da distância entre as estações do metrô do Jardim Oceânico e de São Conrado (devia haver uma parada no meio do caminho para a gente descer, esticar as pernas, ir ao banheiro, quem sabe comer alguma coisa num Graal), é porque seus átomos já se esqueceram dos bilhões de anos-luz percorridos desde o Big Bang até se reconfigurarem aí, na sua pessoa.
Mas, antes de ser você, cada uma dessas partículas pode ter sido muitas outras coisas: a azeitona da pizza de ontem, o gin tônica da semana passada; o leite materno, o cigarro de palha fumado pelo bisavô, a cinza lançada na explosão do Krakatoa, a craca agarrada ao casco de um navio. Pode ter sido o olho cambaio de Camões, a erva daninha carpida de um jardim da Babilônia, lasca da flecha de um neandertal ou (sim, conforme-se) o pum de um dinossauro.
O quanto em cada um de nós é pó de estrela 100% original de fábrica ou flato jurássico reciclado talvez defina quem somos, com o que sonhamos, o destino que temos.
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Queria que quem eu amo voltasse para mim com a determinação com que o durex volta para o rolo depois de cortado (a fita adesiva também faz isso), sem deixar marcas de que um dia tenha partido, e sem que a ponta através da qual possa se descolar venha a ser encontrada jamais.
Queria que as mágoas fossem voláteis como o isopropanol dos lencinhos umedecidos, esses para limpeza de óculos (ou “lens wipes”, como se diz em português). Que as dores acabassem tão depressa quanto a tinta dos cartuchos da impressora. Que as cicatrizes da alma desaparecessem sem vestígios, assim como os óculos, as chaves, aquele saite que eu queria ver de novo, o livro que emprestei – para nunca mais.
Queria que quem eu quero sentisse por mim a atração que meu dedinho do pé sente pelos pés da cama e da cadeira de balanço, nas noturnas incursões, às escuras, até o banheiro. Que fizesse questão de estar ao meu lado, como fazem, no cinema, as pessoas que conversam durante o filme. Que não desistisse nunca de mim, como não desistem os pernilongos nas noites quentes.
Que os afetos e as bem-aventuranças viessem até mim sem que eu tivesse que pedir ou merecer, como vêm os flanelinhas, onde quer que estacione. E que a desdita, a doença, o desgosto me ignorassem, como me ignoram os garçons e os vendedores da Leroy Merlin.
Que à minha portaria chegassem, diariamente, figos em calda, frutas cristalizadas, geleia de kinkan, doces árabes, abacaxi na cachaça, brigadeiros, cajuzinhos, bem-casados, como à minha caixa postal chegam, todos os dias, os xingamentos dos haters e os spams da Claro e da Amazon.
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Vai ver, sou pó de estrela sim, mas de estrela de pornochanchada, de estrela do mar pendurada em parede de restaurante de beira de praia. Pó de carrapato-estrela (aquele da febre maculosa), pó da estrela solitária (e deprimida) do Botafogo.
Pó da estrela de Manuel Bandeira:
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Pó da hora da estrela Macabéa de Clarice. Da estrela polar de Vinícius (“perdida no Polo Norte / de toda a tristeza humana”). Pó de raio, estrela e luar, do Wando.
“Do pó de estrela viemos”, diria Carl Sagan, se lhe tivesse sido dado escrever o Eclesiastes. Se me fosse dado escolher, queria que meus átomos se reagrupassem como uma Coffea arabica – para eu retornar ao pó como pó de café. E ter por epitáfio: “Aqui jaz, ainda um pouco amargo, mais estimulante do que nunca e enfim cheiroso”.