Neste terceiro dia de Chanuká, a festa das Luzes, penso na iluminação que tanto nos falta e no infinito de energia que gastamos à toa e por causas que, embora nos pareçam nobres, são impulsos primitivos, os mesmos que levavam os povos antigos a se digladiarem, e, hoje, de novo.
Antes que os ilustres (do latim illustris, brilhante, claro, bem iluminado) leitores do blog pensem que este parágrafo é uma crítica aos apagões da Light, esclareço (!): estou falando do Botafogo, do facho de luz que, no hino, percorre a imaginação do povo que torce para a estrela.
Solitária é que ela não é, pois que vive dos brados de gente iludida que move as mãos para os céus como profetas cegos, gente barbuda lamuriosa como eu nas últimas semanas, esperneando que nem uma cabra junto com os meus… “iguais”.
Nasci em 1965, um ano depois do golpe militar. Três anos após, o Botafogo era campeão pela última vez, junto com o AI-5, em 1968. Se na França os estudantes levantavam barricadas clamando por liberdade, aqui era a como se as trevas da ditadura trouxessem, junto, o apagar das luzes dessa estrela batizada.
Não tenho memória da insurreição golpista nem da vitória do time que eu nem sabia ainda que era o meu. A primeira vez que me vejo Botafogo é de mãos dadas com meu pai, saindo de um jogo, quando papai, um homem pesado e redondo, caiu com uma das pernas num bueiro aberto, em meio à chuva forte que caía nos arredores do estádio.
A sensação de ver papai afundar é das lembranças mais tristes que guardo, inversamente proporcional ao alívio de vê-lo resgatado por uma boa alma, um sujeito que passava e o puxou para fora do que, a depender do acaso, poderia ter sido sua cova. Anos mais tarde eu pensaria em como ser Botafogo era um pouco como essa perspectiva de estar entre a cova e a salvação.
Nada que me tirasse as alegrias de sê-lo: os 21 anos de jejum foram plenos de contrastes, e a maior felicidade era correr pelas arquibancadas de cimento sem cadeiras do Maracanã quando era digno desse nome. Eu queria ser campeão, mas não era isso que mais importava: o amor pela camisa, pela estrela, por ver aquele uniforme no gramado, era algo que transcendia o jogo, os números, os resultados.
Ser Botafogo, eu pensava, era como a vida: sem sonhos de hegemonia, sem metáforas de nação, sem vontade de matar quem torce pelo adversário (como quando as bandeiras dos rivais davam a volta nas arquibancadas e eram saudadas pela torcida do outro, era comum Vasco e Botafogo fazerem isso antes do jogo).
Décadas depois, com o Botafogo já tendo sido campeão de 1989 e de 1995, entre outros títulos, e o entulho autoritário varrido (até quando resistirmos…) para o lixo da História, constatei que não era mais assim, se é que algum dia fora: de uma forma geral, as pessoas trazem na paixão clubística um impulso destrutivo que deve ter paralelo estreito com os ciclos de violência entre os povos desde que éramos tribos.
Torcedores perdem a alegria de viver por causa de uma derrota, matam-se nas ruas e nos estádios, invadem os clubes pedindo o pescoço dos atletas, ameaçam famílias, expõem crianças à agressão, estragam fins de semana, praticam violência doméstica, por causa… de um time. Um time. Um time! Fui percebendo também que esse caráter supersticioso, algo messiânico e arrogante do alvinegro, por achar-se especial, diferente, era no fundo mais parecido do que diverso do que via nos rivais com os quais eu implicava, acusando as agremiações mais vitoriosas de se associarem a um sentimento de turba fascista. Há livros e livros mostrando como, em certos países, as bandeiras tremulam por causas vis, e a turma da arquibancada se presta a missões milicianas, a serviço de regimes totalitários com plataformas racistas. Exemplos inversos, de torcidas trazendo ares democráticos e inspirando a igualdade entre os povos são raras. Diferente do que vemos nos Jogos Olímpicos, por exemplo.
Mesmo em meio a essas reflexões, passei os últimos dias tentando explicar as simetrias que levaram o Botafogo a, em 2023, perder tudo que ganhou, viradas idênticas em série, gols na prorrogação em sequência, dando chancela à máxima já um pouco gasta de Paulo Mendes Campos sobre as coisas que só acontecem ao Botafogo.
No fim, em meio a hipóteses mil, cheguei a algo que nada tem a ver com a derrocada alvinegra: a de que isso tudo é uma grande bobagem. Quantos livros deixei de ler esse ano, quantos minutos de paz desperdicei por causa de algo que simboliza… o que mesmo? Estrela? Facho de luz? Preto e branco? Carlito Rocha? Biriba? Manequinho?
Ok, salva-se Garrincha, que baixou por General Severiano, como podia não ter baixado, mas quando penso na cambada de dirigentes sem escrúpulos que passaram por ali (como por todos os clubes) e em como a gente, cantando um hino (essa coisa horrível que remete aos colossos nacionalistas, que me perdoe Lamartine) se sente elevado por um “sentimento que ninguém entende”, fico pensando: ninguém entende porque não há o que entender. É ilusão, e só.
Muitos dirão que aqui fala a amargura e o sentimento de derrota. Mas não é não. Ano retrasado, eu já pensava nisso, já havia aprendido a não me aborrecer com futebol, se o time ia bem, podia curtir ver uns jogos, se ia mal, ia cuidar da minha vida, nem ligava a televisão, e buscava coisa melhor para fazer — e são tantas!
Aí, veio a SAF… e com a SAF, a ferida que a gente cutuca, a esperança… de que mesmo? Ah, de vencer! Mas é isso a vitória de um ser? Então, os torcedores do América ou do Bangu não são dignos da vitória de viver, de amar, de sonhar com tudo o que não é futebol? Então, a religião é que é o ópio do povo? Até pode ser, mas nela há doutrinas, cismas, exegeses, discussões, alguma filosofia, algumas visões e ideias fundadoras, e muitos, muitos, imensos, colossais equívocos. Mas ópio, ópio mesmo, é o futebol. Nesse, quem se vicia não sai mais.
Agora, ser Botafogo, Flamengo, Grêmio, Real Madri, qual é mesmo a doutrina? Muitos dirão que cada clube tem uma cultura, uma história, algo como uma essência que o caracteriza e acaba derivando para o caráter dos seus torcedores. Sei lá… isso tá me parecendo conversa de Zodíaco.
Pois neste sábado, terceiro dia de Chanuká, penso em luzes, mas em outras, as que trazem lucidez (provavelmente do latim Lux, a iluminação que dissipa as sombras para que se chegue a um acerto no juízo das coisas). Oposto de ilusão. Que essa luz, e não as das tochas que perseguem as minorias e os indivíduos, nos ensinem mais que as empáfias do futebol.
Arnaldo Bloch é jornalista, escritor, tradutor e roteirista. Autor de “Os irmãos Karamabloch”.