“É impossível ficar meia hora sem ouvir alguma explosão ao fundo. Às vezes, o vidro da janela e as portas sacodem”. Começa assim o relato do carioca Jonathan Korn, 35 anos recém-completados, em conversa com a coluna, de Herzliya, cidade perto de Tel Aviv, Israel, com mais ou menos 80 mil habitantes, como ele diz, bem na “meiuca, e quando eles atiram em direção a Tel Aviv e erram, cai aqui. Está sendo uma experiência completamente surreal. Tem dia que parece sonho (ou pesadelo)”.
Jonathan não dorme direito há uma semana. Quando pensou que tinha vencido uma guerra particular, completamente aliviado com a recuperação da mãe, Sherry Tabori Korn, sobrevivente de um câncer de mama, três dias depois do bom diagnóstico, o grupo extremista Hamas (ala radical que defende a criação do Estado palestino) invadiu uma rave ao sul de Israel, dando início a um horror sem prededentes.
Dois dias antes do “Universo Paralello”, festival eletrônico de origem brasileira, a 5 km da Faixa de Gaza, com quatro mil pessoas, no último sábado (07/10), um primo de Jonathan insistia para eles irem à festa, mas, por ser longe e no deserto, pensando no “perrengue” que passaria, ele desistiu. Entre os mortos, três brasileiros: o gaúcho Ranani Glazer, de 23 anos, e as cariocas Bruna Valeanu, de 24, e Karla Stelzer Mendes, de 42 anos.
Jonathan nasceu no Rio, é filho único de Sherry Tabori (uma das fundadoras da Câmara de Comércio Israel-Grécia) e de Joel Korn (ex-presidente do Bank of America no Brasil e fundador e presidente da WKI Brasil, de consultoria empresarial) e está em Israel há pouco mais de um mês, para acompanhar o tratamento da mãe (cuja família mora toda lá). Ele morou na cidade carioca até ir para a faculdade de Administração na Califórnia (University of San Francisco). O avô materno, Eliyahu Tabori foi cônsul de Israel no Rio, entre 1983 e 1988. “Todo mundo está acostumado com guerras aqui, mas ninguém nunca viu nada igual a esta. O que quebra todo mundo são os relatos que ouvimos, principalmente de mães. Dói demais”, diz Jonathan. Mais ou menos 14 mil brasileiros vivem em Israel e 6 mil, na Palestina, segundo estimativas do Itamaraty, sendo que a maioria está fora da área de conflito. Isso, porém, não é um termômetro tranquilizador. Na conversa, não entramos em questões políticas nem ideológicas, embora sejam citadas por alto — foi mais para relatar o que um carioca tem visto e passado numa região conflituosa.
Onde você estava na hora e como foi entender tudo?
Eu estava em Herzliya, uma cidade a 15 minutos ao norte de Tel Aviv, na casa da minha tia. Tinha saído na noite anterior, voltei tarde e fui dormir. A sirene começou por volta das 6 da manhã… Não é uma sirene normal, é uma sirene apocalíptica, do tipo, “amigo, está chovendo foguete aqui”. Acordei com a sirene, o cachorro latindo, minha tia gritando meu nome, saí do quarto e não conseguia encontrar ninguém… Abri o celular e vi o mapa – todo israelense tem um app que avisa se está vindo foguete, e o mapa estava todo coberto de pontinhos vermelhos. Desesperador. Logo depois da sirene, vem outro barulho, o das explosões, porque eles nunca lançam um foguete de cada vez, mas vários, então você vai escutando um boom lá no fundo, alguns mais próximos, outros mais distantes. Às vezes, tem o bem próximo onde as coisas sacodem e a gente sente a janela ou a porta mexerem. Daí, a gente liga a TV e as informações começam a chegar. Antes, eu ouvia as sirenes pelo Facetime, quando falava do Rio, falando com a minha mãe. Foi diferente ouvir ao vivo.
Já passou por algo parecido? Em um vídeo, você disse que nunca tinha visto isso, nem em estado islâmico. O que foi a primeira coisa na sua mente?
O mais bizarro mesmo foi ver um jipe do Hamas numa rua em Sderot, uma cidade dentro de Israel… Você fica pensando ‘de onde eles vieram, como é que eles chegaram, será que estavam infiltrados? O Hamas e o Estado Islâmico têm a mesma ideologia: que tudo vai ser território do califado (autoridade religiosa do mundo islâmico). São muito, muito parecidos e têm muita troca entre si. E o Estado Islâmico ficou muito famoso pela barbárie com os sequestros e decapitações ao vivo. Agora, a gente começa a ver o Hamas levando isso para um nível ainda mais absurdo, com milhões de histórias horrendas, por exemplo, mataram a avó de uma conhecida e pegaram seu celular e enviaram a foto dela morta para a família. Me faltam até palavras. Eu fico tentando descrever aqui, mas você fica meio anestesiado e em choque ao mesmo tempo. Me lembro uma história contada pelas amigas da minha avó, sobreviventes do Holocausto, em que uma delas chegou num trem ao campo de concentração e, numa das paradas, um oficial nazista entra, vê uma moça segurando um bebezinho, pega o bebê pelas pernas e simplesmente bate com o bebê contra a parede até matar. É um nível de barbárie que você fica paralisado.
Imaginou que um dia isso pudesse acontecer do jeito que está acontecendo? Por quê?
Desse jeito, nunca. Tenho muitos amigos israelenses, e a maioria serve no exército, ainda mais da minha geração, com alguns tendo ido a Gaza ou ao Líbano, em guerra contra o Hezbollah (milícia xiita libanesa fundada em 1982). Quando o Hamas começa a atacar muito, Israel responde com ataques cirúrgicos, e os conflitos não duram muito. Não é que nem nos EUA, onde as guerras duram 5, 10 anos; aqui, as guerras têm que ser muito intensas para acabar logo. Nesse último ano e meio, o goverrno de Israel estava com uma política legal, dando visto de trabalho para o pessoal de Gaza trabalhar em Israel, com salário muito mais alto do que em Gaza, tentando fazer funcionar, mesmo que no estatuto do Hamas esteja escrito ‘não reconhecemos o estado de Israel, morte e destruição a todos os judeus, não tem negociação’, mas o governo de Israel já estava estendendo a mão.
Como era o seu dia a dia antes do ataque e como está agora? O que e como mudou? Quais as precauções, os avisos? Você consegue dormir direito? Você disse que os avisos chegam por notificações — como funcionam?
O contraste, porque eu vim para cá para acompanhar o tratamento de câncer da minha mãe, que acabou três dias antes de a guerra começar; então, por três dias, tive uma sensação de alívio e dá para relaxar um pouquinho, e eu estou trabalhando remotamente daqui. Fui visitar amigos, um primo que mora no norte, voltei. Estava ótimo. Fui pra Tel Aviv e me lembro de ter passado por um túnel enorme com um monte de bunkers, muitos sistemas de proteção e segurança e pensei ‘entendo que tenhamos, mas tomara que a gente não tenha que usar’. Não deu nem 24 horas, e a guerra começou. As precauções são ‘não fique na rua’, porque muitos terroristas se infiltraram e o país é muito pequeno; então, como demorou quase 4 horas para o exército responder, nesse tempo, facilmente você pode estar em qualquer lugar do país. Nem 10 minutos andando de onde eu estou, pegaram uns três terroristas plantando uma bomba. Passando alguns dias, você já sabe que a maioria já foi morta ou capturada. Dormir mais que três horas é impossível, então você dorme meio com a adrenalina e acorda no meio da madrugada pronto para qualquer coisa. E está todo mundo cansado. Estou fisicamente bem e emocionalmente exaurido. A gente ouve muito movimento de caça (avião) e helicóptero. O aplicativo de celular manda uma notificação, tem um mapa de Israel e ele vai te mostrando para onde estão mirando os foguetes e, mesmo que o domo consiga interceptar 90%, já passaram mais de 3.500 foguetes, ou seja, 350 vão cair, vão bater em alguma coisa. No segundo dia, um foguete caiu a 200 metros da casa da minha prima; o outro caiu na casa ao lado de um amigo, e você não pode relaxar.
Alguns brasileiros foram convocados para a guerra. Você corre esse, digamos, risco?
Todo judeu tem direito à cidadania israelense, então, quando você faz 18 anos, se você mora aqui, você é convidado a participar do exército. Como eu não morava aqui, morava no Rio e fiz faculdade nos Estados Unidos, não me alistei. E como estou com 35 anos, estou velho demais para ser convocado.
Você conhece muitos brasileiros aí? Conhece alguém que estava nessa rave, alguém que foi sequestrado pelo Hamas ou sumiu?
Poucos dias antes da guerra, eu estava numa festa, mas não tinha ninguém israelense. Eram judeus que se mudaram pra cá, franceses, alemães, austríacos, brasileiros… A comunidade brasileira aqui é muito unida, é bem legal, então todo mundo se conhece, minha família toda está aqui, avós, tios, primos, cachorro… Soube de um conhecido, mas não amigos, mas essa história é foda, fico arrepiado só de lembrar. Fiz aniversário recentemente; o namorado da minha prima estava e falou que teria uma festa no deserto, de música eletrônica e que eu deveria ir. No meio do deserto, lá no sul, o maior perrengue, fiquei com zero vontade de ir. Somente dois dias depois foi que conectei os fatos. Não quero entrar em detalhes, mas meu primo perdeu dois amigos: um foi morto, e o outro a gente acha que está em Gaza. E o amigo da minha mãe que estava na festa e conseguiu fugir a tempo – não sei como, ele sacou o que estava acontecendo, conseguiu pegar o carro, e não só fugiu como também atropelou dois terroristas. Outro, vendo pelo mapa que os foguetes chegariam até lá, pegou o carro e conseguiu resgatar o filho que estava na rave. É um país muito pequeno, é impossível não conhecer alguém que more no sul e/ou estava na festa, e essa sensação de luto com os relatos dificulta muito. Uma professora, melhor amiga da minha mãe de uma faculdade no sul, contou sobre famílias de alunos inteiras mortas. Está tudo muito pesado, um luto coletivo absurdo e simplesmente todo mundo tem alguma história horrorosa.
Israel tem um dos esquemas de segurança mais consolidados do mundo (apesar de ter sido considerado falho em prever o ataque do Hamas), com equipamentos de ponta no solo, ar e até no espaço, com satélites e bunkers. Existe essa possibilidade de terem que ir a um bunker?
Quanto à falha, obviamente que vai ter uma comissão quando tudo acabar, para entender o que aconteceu. Até agora, já ouvi muitas hipóteses. Sobre os bunkers, vou quase todos os dias. Aqui existem bunkers públicos, mas cada prédio tem o seu, e os apartamentos mais novos têm um cômodo com paredes grossas e chapas de aço. Pela minha localização, eu tenho 20 segundos para chegar; já o pessoal do sul tem menos de 10 segundos.
Aqui, no Rio, a gente não consegue imaginar nada do tipo; por isso, tantas dúvidas, porque mesmo a pior das violências urbanas não chega perto de uma guerra… Você e sua família nunca pensaram em sair daí, voltar para o Brasil? Por quê?
Desta vez, estou aqui há pouco mais de um mês; desde então, teve o Ano Novo judaico, 10 dias depois, o Yom Kippur. São datas muito sensíveis, em que as pessoas estão em alerta por causa de um possível atentado. Eu tinha saído com um amigo pra beber e comer pizza, a gente sentou na rua e houve uma explosão. Começou uma gritaria, todo mundo correndo, eu me escondendo entre uma lixeira de metal e a parede, meu amigo se escondendo dentro da pizzaria. Foi um caos. Enquanto a gente estava dentro da pizzaria, vimos dois, três homens armados na rua; só que, como não estavam fardados, por um momento você não sabe se é um policial ou terrorista. No Rio, se a pessoa quer seu celular, a gente não espera que o ladrão vá te matar, você tem esse momento de troca; aqui, a pessoa te mata sem conversa. Sobre sair daqui é sem chance; acho que sou o único brasileiro da família aqui. Meus avós estão velhinhos, minha mãe está se recuperando, e acho que, se eu pegar um avião e voltar para o Brasil, ficaria completamente louco, emocionalmente destruído..
Israel parou. Têm muitos relatos de cidades abandonadas, vazias… O que faz para passar o seu tempo e permanecer relativamente tranquilo?
No sul, a experiência é diferente porque os terroristas capturaram e invadiram várias cidades, enquanto aqui ninguém anda mais na rua, porque não quer estar num carro quando começar a voar foguete. Como meu trabalho é no Brasil, tenho o luxo de poder passar minhas manhãs ajudando a preparar o apartamento para a guerra, ajudando minha mãe; então, à tarde e à noite, consigo trabalhar um pouquinho. Também tenho feito trabalhos voluntários e tentamos conversar sobre memórias engraçadas ao som de explosões ao fundo.
Como os cidadãos civis e soldados estão lidando com os estrangeiros? Existe solidariedade?
Talvez essa seja a parte bacana da guerra: existe muita união, solidariedade, caridade, muito trabalho voluntário e doações. Pessoal da minha região oferece abrigo para o pessoal do sul, organizações que resgatam os corpos e garantem um funeral decente. É muito bonito ver todo mundo unido. Até quando toca a sirene, é muito comum a pessoa abrir a porta da sua casa para alguém que está na rua, porque toda família teve um parente que serviu no exército; então é muito comum as famílias se unirem para ajudar. Muitos restaurantes estão montando cozinhas a céu aberto no sul, fazendo comida de graça e muitas outras ações.
Por Dani Barbi