Cacau,
Você, certamente, não lerá esta carta. O que não faz muita diferença: ainda que o que se diz aqui se referencie a um caso específico, ela é destinada, em última instância, a todas as cacausprotásios, não a uma em particular. E as cacausprotásios que a lerem possivelmente não se identificarão como destinatárias. O que é previsível: às vezes o autoengano é tanto que não nos damos conta daquilo que nos tornamos. O inferno, como sabemos, são os outros.
Há uma canção no filme “Hair” (Milos Forman, 1979) em que a magistral Cheryl Barnes canta – após ser humilhada pelo (ex) namorado Hud, o libertário interpretado por Dorsey Wright:
“How can people be so heartless?
How can people be so cruel?
Easy to be hard, easy to be cold.
(…)
Especially people who care about strangers,
Who say they care about social injustice.”
Numa tradução literal, e que não faz jus à letra original, ela se pergunta:
“Como as pessoas podem ser tão insensíveis?
Como as pessoas podem ser tão cruéis?
É fácil ser duro, é fácil de ser frio.
(…)
Principalmente pessoas que se preocupam com estranhos,
Que dizem se preocupar com a injustiça social.”
Você diz ser de esquerda, já ter sofrido preconceito – por ser mulher, preta, fora dos padrões estéticos. Numa entrevista, declarou:
– “Aprendi com a minha avó que não devemos mostrar a caridade que fazemos. Enfim, nesse tempo distribuí cesta básica no sinal, para frentista, na rua, para pessoas desempregadas passando necessidades, colegas meus que não tinham grana para pagar aluguel, então, eu fazia vaquinha.”
Ou seja, você é daquelas pessoas que se preocupam com estranhos, com a injustiça social. E que aprendem que não devem mostrar a caridade que fazem, mas…
Você qualificou como “conversa fiada” as recentes denúncias de assédio moral contra roteiristas, praticadas pelo elenco do programa no qual você atua.
Claro: assediadores são os outros.
Talvez você não saiba, mas assédio moral é crime. Ele fere a dignidade da pessoa humana – tanto quanto o preconceito em função de origem étnica, identidade de gênero, aparência física. Assédio moral humilha, degrada, adoece. Um dos roteiristas que denunciaram como tóxico o elenco do qual você faz parte afirmou ter precisado de ajuda psiquiátrica.
Isso não é conversa fiada, Cacau. Mas dificilmente o assediador, o abusador, o opressor, o intolerante se reconhece como tal.
Sobre o roteirista demitido, você declarou:
– “Eu não conheço, eu não convivo. (…). Eu nunca vi. Só na mídia. (…). A gente não tem uma relação e não tinha no programa.”
Cacau, você acha normal não conhecer, não conviver, nunca ter visto, nunca ter tido qualquer contato com quem escreve as suas falas? Com quem, efetivamente, cria o personagem que você interpreta? Com quem é o responsável pelas risadas que você arranca da claque e do público?
Você teria dito isso do João Emanuel Carneiro, que escrevia as falas da sua personagem em “Avenida Brasil”? Ou esse desdém só vale para quem está um degrau abaixo, fazendo um trabalho supostamente subalterno, ganhando um salário muitas vezes menor que o seu?
É sério que você nunca teve sequer a curiosidade de conhecer os cérebros por trás dos textos que interpretava? Nunca lhe ocorreu que eles chegavam até você a partir de um criador, um trabalhador, um artista?
– “Às vezes a gente até perguntava: “Quem escreveu esse texto aqui?”. Mas a gente não sabe.”
Sabe, sim. E você sabe que sabe. E sabe que os textos deixaram de ser assinados (por aqueles escritores invisíveis, “subalternizados”) justamente para evitar que houvesse discriminação.
Sua coerência (como no caso do “Aprendi com a minha avó que não devemos mostrar a caridade que fazemos” x “distribuí cesta básica no sinal, para frentista”), é notável:
– “Eu nunca vi. Nunca foi ao programa.” (…) “Uma vez a pessoa foi no programa. Entrou por trás e saiu por trás e não falou com o elenco. Então, não é a gente que não gosta, né?”
“Essa pessoa” – que você viu / nunca viu; que foi uma vez ao programa / nunca foi ao programa – tem nome. Chama-se André. É um cantor excepcional (ouça seus discos, “O jardim de André”, “Porta-bandeira”, “Tempo”, e sua participação no belíssimo “Senhora das folhas”, de Áurea Martins). É um compositor talentoso. Um ilustrador inventivo e sensível. Um cronista genial, na linha direta de Nelson Rodrigues e Aldir Blanc como intérprete da alma suburbana. Um roteirista brilhante, na opinião dos seus colegas da mesa de roteiros. Essa pessoa a quem você recusa um nome “entrou por trás e saiu por trás” porque essa é, aparentemente, a forma como o programa do qual você participa lida com os de casta inferior – aqueles que plantam para que você colha, que produzem para que você consuma, que acionam a luz para que você brilhe.
Cacau, repare que você não rebate nenhuma das críticas recebidas. Não ensaia uma autocrítica. Não se coloca no lugar do outro. Em vez disso, desqualifica o crítico, e desdenha da carta enviada pelos roteiristas do programa, pleiteando condições dignas de trabalho:
– “Todos os redatores estão lá escrevendo e gravando. E essa carta aberta que ninguém assinou? ”
Sim, os redatores estão lá escrevendo: precisam do emprego. Têm contas a pagar. Ou não se sujeitariam, por tanto tempo, ao clima tóxico e desrespeitoso que, agora, trouxeram a público. A carta coletiva é uma forma de proteção – afinal, são o elo mais fraco.
Não culpe a vítima, Cacau:
– “Não duvido que ele seja um profissional maravilhoso. Mas eu me pergunto. (…) Por que a produtora não o colocou em outro projeto?”
É fácil ser progressista, solidária e empática no discurso. É fácil se lembrar do passado de oprimido sem se dar conta da opressão que se pratica no presente. Afinal, privilegiados são sempre os outros. E talvez você – como toda cacauprotásio que se preze – não tenha percebido, ainda, como podem ser insensíveis e cruéis as pessoas que dizem se preocupar com estranhos e com a injustiça.
Cordialmente,
Eduardo