Insone, alta madrugada, sem ânimo para abrir um livro, sem coragem para retomar uma série (ruim) da Netflix, peguei o celular na mesinha de cabeceira e fui ver as notícias, os tuítes, os comentários.
Esbarrei na postagem de um amigo virtual, que me chamou a atenção pelo primeiro parágrafo:
“A religião mais interessante de todas é o ateísmo.”
Podia ser ironia. Ou um paradoxo. Gosto de ironias e paradoxos, porque fazem cócegas nos neurônios, tiram-nos da poltrona onde estão aboletados e os obrigam a um crosfitezinho básico com as sinapses.
Não, não era uma ironia ou paradoxo. Era uma provocação. Porque prosseguia:
“(…) é divertido vê-los negar que também são crentes em algo: a não existência do que não conseguem provar que não existe.”
Tico deu um duplo twist carpado, Teco fez uma tittibhasana com uma mão só e o pé atrás da orelha. Como provar o que não existe? Como se comprova que não há unicórnios de sete chifres voando de costas, invisíveis, com seus moletons roxos, nos anéis quadrados de Plutão?
Esse é o grande incômodo provocado pelos ateus: eles estão fora da lógica teísta.
Um dos meus cartuns preferidos mostra um garfo e uma faca intrigados diante de um hashi. “Qual deles é a faca?”, pergunta o garfo à sua parceira. Deve ser difícil a um talher entender que hashis não são faca nem garfo nem colher, mas pertencem a outra categoria: a dos pauzinhos.
Ateus não são devotos de uma não-divindade: são (somos) imunes a entidades sobrenaturais, como deuses, demônios, fadas, elfos, gnomos, espíritos, anjos, centauros, ciclopes, sílfides, minotauros, mulas sem cabeça, trolls, ninfas, sereias, orixás, cucas, caboclos, boitatás.
Nada contra quem acredite. Mas eu passo. Nada contra quem precise deles. Mas eu vivo muito bem sem orações, superstições, novenas, despachos, rituais, mandingas, milagres, pecados, oferendas. E viver sem isso não é uma religião.
A crer na teoria do meu amigo virtual, não há veganos, mas carnívoros que não comem carne. Não há fungos: eles têm que escolher entre ser animais ou vegetais. Me lembra um colega de faculdade, que justificava sua homossexualidade garantindo que todos são gays – alguns apenas negam e passam a vida se reprimindo e fingindo gostar do sexo oposto.
A Igreja medieval mandava os ateus para a fogueira. As teocracias islâmicas ainda os condenam à morte. Aqui, no mundo civilizado, pós-iluminista, a intolerância ao ateísmo se dá de maneira mais sutil: com o escárnio, a desqualificação.
“O ateu é mais ou menos um petista das religiões”, prossegue o texto.
“É bem interessante de assisti-los em sua (não)crença. Apesar de serem geralmente dotados de bagagem cultural e bom senso, no fundo, no fundo, não diferem tanto assim do coitado que entrega mensalmente o dinheiro da educação de seus filhos a um charlatão gritando sobre um palco que tem uma linha direta com um ser imaginário.”
“(…) nós somos desconhecedores. Mas o fanático religioso e o ateu desconhecem com mais convicção. São os extremos opostos em um universo de ignorância.”
Agradeço (não a Deus, mas ao acaso) que esse amigo virtual viva hoje – não durante a Santa Inquisição. E que vivamos aqui, não no Irã, no Afeganistão, na Nigéria, na Arábia Saudita, na Somália, no Sudão.
Ou eu – e aquele que pensa como eu – estaria morto.
Nietzsche disse que não concebia um Deus que não soubesse dançar. Eu, mesmo sem crer, não concebo um cuja devoção inclua discriminar e odiar.