Quantos artistas brasileiros podem falar que sua vida mudou depois de um espetáculo de teatro? Armando Babaioff, 41, é um deles: “Tom na Fazenda”, um fenômeno, em cartaz há cinco anos, com 235 encenações no Brasil, em outros países e mais de 30 mil espectadores (até 18 de dezembro), está no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea. É a sua 10ª temporada no Rio; em março, faz 21 apresentações no Théâtre Paris-Villette, em Paris, além de, pelo menos, em 17 centros culturais em países europeus. “Minha vida se divide em antes e depois dessa peça”, diz. “É o primeiro feito de uma peça brasileira falada em português, independente, no calendário oficial da prefeitura de Paris”, avalia, surpreso.
Desde a estreia, em 2017, a montagem, baseada na obra “Tom à la Farme”, do autor canadense Michel Marc Bouchard, traduzida e produzida por Babaioff, com direção de Rodrigo Portella, e elenco com Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary, além do próprio Babaioff, soma indicações e prêmios, como o APCA, APTR, Shell, dentre outros. Foi mostrada em São Paulo, Montreal, no Canadá, e, a mais marcante, na programação off do Festival de Avignon, no Sul da França, considerado a Copa do Mundo das artes cênicas, eleita uma das 13 peças favoritas entre as mais de 1.500, segundo o “Le Journal du Dimanche” e o “Coup de cœur du Festival”, do jornal “La Croix”.
Babaioff conheceu a história através de um amigo, em 2014: o publicitário Tom (Babaioff) vai à fazenda da família para o funeral do namorado e, ao chegar, descobre que a sogra (Soraya Ravenle) nunca tinha ouvido falar dele e nem sabia que o filho era gay. A partir daí, Tom é envolvido numa trama de mentiras.
No entanto, Armando teve dificuldades de patrocínio por causa da temática e banca a peça do próprio bolso, apesar de todo o sucesso. Foi também por causa da peça que ele se assumiu gay publicamente, pela primeira vez, em maio (para a família, contou em 2018). Ele namora o publicitário Victor Novaes há mais ou menos três anos.
Babaioff também é DJ e produtor da festa Sopa, há 10 anos no Rio, com a próxima no dia 10 de dezembro, no Mergulhão da Praça XV, ao ar livre, em parceria com a Prefeitura.
Como você enxerga a trajetória de “Tom”? Foi paixão à primeira leitura?
O que estamos fazendo é histórico. Aqui, no Brasil, não temos essa cultura de internacionalizar teatro. A gente sabe de festivais de cinema, que é mais fácil de levar (mais portátil), de música, artes plásticas, dança, mas teatro falado em português é quase uma raridade. Tive contato com o texto em 2014. Estava trocando figurinha com um amigo cinéfilo e chegamos ao nome do canadense Xavier Dolan, e ele me contou sobre o filme “Tom na Fazenda”, que eu nunca tinha ouvido falar. Como era baseado numa peça de teatro, encontrei o texto na Internet. Li e, no mesmo dia, eu já estava produzindo, deitado na minha cama, já sabia o elenco, quem faria o figurino, o cenário, a trilha. Depois de três anos, a peça estreou com tudo que eu tinha imaginado.
Como aconteceu de ator a produtor?
Gosto muito de produzir, realizar, fazer as coisas saírem do zero e ganhar corpo. É a minha terceira produção. Quando comecei a trabalhar em TV, já fazia teatro desde os 11 anos — é a minha casa, onde eu estudo, aprendo e me renovo. Comecei na TV por causa de “A primeira noite de um homem” (2004, adaptação de Miguel Falabella do romance de Charles Webb), com Vera Fischer; fui selecionado no meio de uma centena de atores. Quando fiz meu primeiro trabalho na TV, guardei o dinheiro pra investir no teatro, em vez de gastar com besteiras. Então, produzi “Na solidão dos campos de algodão”, no CCC, em 2008. A peça foi indicada a prêmios e viajamos para alguns festivais.
Pessoalmente, qual a diferença entre TV e teatro?
Na TV, os personagens aos quais eu tinha acesso eram sempre muito periféricos, muito diferente do que eu fazia no teatro. Era legal pelo dinheiro, pelo comodismo de estar contratado, mas artisticamente não era um grande desafio. Entendi muito cedo que não queria ser mais um daqueles atores de TV. Nada contra, mas os desafios eram muito rasos, e meu barato é tentar entender como posso contribuir para mudar um ponto de vista, uma ideia, uma discussão, porque vejo teatro como uma ferramenta de transformação. É minha igreja, meu templo. As pessoas entram ali de um jeito e saem de outro. Ainda mais “Tom”, que tem uma história sobre homofobia no país que mais mata homossexuais no mundo. O que fazemos no palco é uma denúncia e podemos atingir pessoas muito rápido porque a empatia no ao vivo é poderosa.
Foi difícil continuar depois de muitos nãos?
Desde 2015, eu estava produzindo sem êxito, recebendo nãos de várias empresas, que diziam não se interessar pelo texto, num preconceito velado — uma respondeu que nosso projeto era arrojado demais para o perfil deles. E isso só me motivava. No momento em que eu decidi fazer com meu dinheiro, pintou o único patrocínio até hoje, do Oi Futuro, em março de 2017. O Roberto Guimarães, gerente-executivo de Cultura do Oi Futuro, que morreu em 2021, me perguntou por que eu queria fazer aquela peça. Mostrei duas matérias de jornal: a de uma travesti chamada Dandara dos Anjos, que foi assassinada e teve um vídeo colocado na Internet sendo carregada, linchada e espancada até a morte, porque disseram que ela sequestrava bebês (a mesma inspiração de Glória Perez em “Travessia”). A outra matéria é de um menino chamado Itaberli Lozano, de 17 anos, assassinado pela mãe e pelo padrasto a facadas e tesouradas; seu corpo foi incinerado porque a mãe não admitia que o filho era gay (Cravinhos, SP, em 2016). Então, esse é o nosso país — na mesma hora, ele topou.
E teve a história de você conhecer o autor da peça…
Fiz um filme com a Mariana Ximenes, chamado “Prova de Coragem”, que foi selecionado para o Festival de Montreal. Eu tinha esquecido que o autor da peça era de lá. Quando cheguei, tive a oportunidade de conhecer o Michel Marc Bouchard, que virou meu amigo. Nós o trouxemos para a estreia no Brasil, ele assistiu e ficou embasbacado com o que viu. Por causa disso, fomos para Montreal e ganhamos o prêmio de melhor espetáculo num festival internacional. O Dennis Carvalho me convidou para fazer “Segundo Sol” (2018), mas pedi que me liberasse para viajar para Montreal, e ele me liberou. Foi a primeira vez que me vi num lugar que não era mais daquele menino de 20 e poucos anos que não queria ser igual aos outros atores de 20 e poucos anos… Era o Dennis comprando meu barulho e me dando 10 dias de dispensa, o que é quase impossível numa novela.
A sua vida depois de “Tom”
Os principais personagens que fiz na TV foram todos depois de “Tom”, o Ionã (“Segundo Sol”) e Diogo (“Bom Sucesso”). Em 2020, depois da novela, estava tentando uma internacionalização da peça; só que veio a pandemia e cancelou tudo — foram os piores anos da minha vida e de muita gente. Mas meus planos no exterior acabaram — íamos para Berlim, Portugal, Itália etecetera e veio a pandemia, entrei num buraco, meio deprimido. Em 2022, quando começamos a ver que as coisas iam voltar, tínhamos duas possibilidades: investir numa temporada em SP ou levar para Avignon, porque gastei a mesma coisa lá do que gastaria aqui em um mês. Mas SP não me daria retorno financeiro e, na Europa, poderia virar outra coisa. Arrisquei. Investi todo o meu dinheiro para levar nove pessoas para a Europa com o euro a R$ 6, alugando teatro, espaço para dormir, refletor, comprando material de divulgação, contratando profissionais, alimentação, seguro-viagem… Estávamos no meio de 1.570 espetáculos, éramos mais um entre todos. E nas ruas, o próprio público indicava a gente, com dias sempre lotados.
O que aprendeu sobre produção no Brasil?
Sofri muito para produzir essa peça, que não me deu um tostão. Ela me deu prestígio, me colocou numa outra prateleira, mas não tenho nada — nem apartamento, casa, carro, nada! Mas eu tenho essa história, e não existe valor que consiga precificar. E foi muito legal porque ninguém viajou com salário, mas pela bilheteria. Investi um valor que eu poderia ter comprado a franquia da Casa do Pão de Queijo (investimento inicial de R$ 200 mil), mas eu não sei fazer pão de queijo — seria a pessoa mais infeliz do mundo. A virada é entender que temos algo forte e potente nas mãos e ir em frente. No Brasil, a gente é muito envergonhado em falar sobre ganhar dinheiro fazendo cultura. Parece que fazer cultura é ter que dar ingresso, tem que ser de graça. Não. As coisas têm preço. Em Avignon, foi um tapa na cara: é uma indústria, um negócio.
Saiu de lá com outra cabeça?
É uma cidade pequena no Sul da França, onde, durante um mês, todas as portas e espaços viram teatro, todos os Fábios Porchat estão lá, todas as Deborahs Colker, todos os grandes atores; tem de tudo – coisa boa e coisa muito ruim, com seis milhões de ingressos vendidos. Isso é dinheiro. É uma economia criativa; aqui no Brasil, estamos engatinhando. Ver isso foi um dos maiores ganhos de entendimento de como investir em cultura e ter retorno. A gente faz um teatro invejável no mundo inteiro. O que a gente produz aqui é infinitamente melhor em qualidade porque a gente trabalha com precariedade, e isso leva à criatividade. Chegamos com uma linguagem que eles não estão acostumados a assistir, e daí eles ficam loucos.
Como está sua vida em 2023?
Estou abrindo mão de audiovisual (TV e cinema) durante os próximos dois anos, por causa de “Tom”, vivendo esse sonho. Temos convite para nos apresentarmos na Bélgica, Suíça, Espanha, Portugal, em mais de 24 teatros na França. Tive que criar uma empresa na França e tenho uma equipe de quatro pessoas trabalhando para a peça. Já estou num processo de pensar num monólogo para mim, algo que eu queira dizer. Comprei os direitos de dois livros que quero transformar em audiovisual e quero estrear na direção de teatro, de uma peça do mesmo autor de “Tom”.
O que espera para a cultura no novo governo?
Já estou sentindo a mudança. Se tudo der certo, devemos fazer uma temporada em SP, quando voltarmos de Paris. E isso já faz parte desse movimento. Não precisamos esperar o ano virar para pensar, as coisas começarem a andar, as pessoas escrevendo. Isso não estava acontecendo antes; pra mim, é ver o sonho acontecendo de novo, dar aquela respirada e a sensação de estar saindo do buraco.
Você se assumiu gay há pouco. A peça também motivou a isso?
Acho que é o movimento natural das coisas, de uma pessoa que se coloca diante de uma discussão mais profunda sobre a sociedade, nossas mazelas, dificuldades e assuntos que são caros e que não combinam mais nos dias de hoje. É por isso que eu vejo um movimento progressista de maneira bonita. Preciso falar de Marco Pigossi (ator que se assumiu em 2021, depois de quase 20 anos, e escreveu um texto para a “Piauí”), que tem um pensamento uma postura que eu admiro demais, que entendo e me reconheço. Até mesmo por estar num lugar de privilégio sendo um homem gay e branco, de ter consciência do lugar onde estou, do que represento e da maneira como o meu trabalho toca e afeta. Acredito no coletivo, na troca. O meu processo de falar sobre a sexualidade foi natural, mesmo porque sou discreto, reservado e não gosto de me expor.
E a peça proporciona histórias inspiradoras?
Tem gente que já assistiu a essa peça 15, 20 vezes, e que levou os pais para falar sobre a própria sexualidade. A gente achava que seria uma peça para o público LGBT+, mas percebemos que o público-alvo é genérico. Foram várias manifestações, principalmente de jovens que estão começando a experimentar a sexualidade; inclusive acompanhei um processo de transição de uma menina em menino. Ela foi assistir em 2017 e hoje ela é o Miguel, meu amigo. Sei a responsabilidade que essa peça tem nesse processo.
numero:13 Já teve alguma manifestação negativa?
Curiosamente, domingo passado, num dos teatros mais caros da cidade (Gávea), duas senhoras resolveram vaiar o espetáculo no fim da peça, dizendo que era ridícula, horrível, nojenta, enquanto eu e o restante do elenco recebíamos os aplausos do público. É esse o caráter de determinadas pessoas que pagaram pra ver e acham que tem que ser agradadas.
Até que ponto a vida pública te incomoda. Como lida com as redes?
Na realidade, eu não ligo muito. Quando você começa a fazer TV, você é mais um no meio de um monte. A maioria das pessoas não sabe nem seu nome; só te viu na TV, e aí quer uma foto. O que me surpreende até hoje é uma pessoa sair de casa para ver um trabalho seu porque gosta. E redes sociais, mostrar minha casa, minha intimidade, a família, meu relacionamento, não sou adepto porque eu sou um ser humano tão normal, tão real. Não conseguiria viver em função de like, de seguidores. Até poderia usar as redes para o lado comercial (ele tem 550 mil seguidores no Instagram), mas nunca quis me tornar refém de mim mesmo. Sinto que, quanto mais você expõe sua vida numa narrativa que é sua, no fim das contas, acaba perdendo o controle da narrativa e vira uma outra coisa. Não dou conta da minha rotina, imagina se vou ficar nas redes divulgando onde estou, o que estou fazendo? Procuro lembrar sempre de onde eu venho, porque o dia que eu esquecer isso, acabou. Somos um experimento, e a vida da gente é um milagre. Só temos esse período para ser humano, e quero que minha experiência seja a melhor possível, assim como a das pessoas à minha volta. Ninguém leva a BMW para o caixão, o Rolex… — só boas experiências.
Um sonho?
Fazer uma peça com Antônio Fagundes (qualquer uma), chegar aos 100 anos lúcido e trabalhando, fazendo teatro, ter uma carreira, olhar pra trás e ter orgulho das coisas que fiz. Busco personagens complexos, como diz meu amigo Caco Ciocler, porque até me pagam para eu me entender. Só consigo ser um bom intérprete pelos livros que li, os ônibus que peguei, por todos os amigos, amores, as gozadas, os choros, as risadas, os enterros, os nascimentos. Isso é o que constitui todos nós, mas tem gente que prefere se anestesiar e não se envolver emocionalmente com as coisas.
Por Dani Barbi