Editora e repórter com experiência de quase 20 anos nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, Cristina Fibe foi a primeira jornalista a investigar os abusos sexuais cometidos pelo então aclamado médium João de Deus, em 2018. Uma semana depois de as denúncias virem à tona pela imprensa, o ex-líder espiritual goiano, que nega as acusações, foi preso. Até agora, ele já foi condenado a mais de 100 anos em regime fechado, mas a Justiça lhe concedeu o direito de ficar preso em sua casa, em Anápolis (GO). Recentemente, Cristina Fibe ficou incrédula e estupefata ao receber a notícia do casamento de João de Deus com uma advogada.
Depois de publicar os relatos de estupro no jornal O Globo, em dezembro de 2018, e ver a dimensão que o caso tomou, com mais de 300 mulheres denunciando formalmente João Teixeira de Faria ao Ministério Público, Cristina aprofundou sua apuração para o livro “João de Deus — O abuso da fé”, lançado em outubro de 2021 pela Globo Livros. Nele, a jornalista conta facetas até então desconhecidas do autoproclamado médium que era o motor econômico de Abadiânia, berço da Casa de Dom Inácio de Loyola. Segundo ela, o centro espiritual foi, inclusive, palco de assassinatos e mortes até hoje sem explicação.
Especializada na cobertura de violência contra a mulher, Cristina Fibe agora investiga outros casos e prepara um filme que terá como base o seu livro.
Depois de tudo o que você viu, ouviu e escreveu, como recebeu a notícia do casamento de João de Deus?
Recebi a notícia com um misto de desalento e frustração. O fato de ele ter se casado fortalece a sensação de impunidade. Um homem condenado a mais de um século de prisão em regime fechado fica apenas 15 meses na cadeia, é autorizado a ir pra casa, retoma sua vida, se casa novamente, e seu principal negócio — a Casa de Dom Inácio de Loyola, local dos estupros pelos quais foi condenado —, segue em funcionamento.
Hipoteticamente, por que uma mulher, advogada (Lara Cristina Capatto), conhecedora dos fatos, se envolve com tal perfil?
É um mistério o que passa na cabeça de uma mulher para seguir ao lado do maior símbolo brasileiro da violência sexual contra os nossos corpos. O que eu posso dizer, sem conhecê-la, é que testemunhei, em minhas viagens a Abadiânia, muita gente descrente da violência cometida por João Teixeira e pela qual ele foi condenado. São homens e mulheres machistas, que questionam a veracidade dos estupros relatados pelas fiéis e insinuam que elas se atraíam por ele. Pois a própria Justiça já respondeu a esse tipo de argumentação retrógrada, injusta e misógina, condenando-o pelos crimes de estupro, estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude. Não é, portanto, questão de opinião. Para voltar à sua pergunta: acredito que homens e mulheres cometam o erro de diminuir a gravidade desses crimes, banalizando os estupros e as violações contra as mulheres.
Conhecendo profundamente a história do médium, o que acha que as mais de 300 vítimas que o denunciaram podem sentir com essa notícia, sendo alguém condenado a mais de 100 anos de prisão, tendo ficado apenas 15 meses preso, e hoje estar vivendo uma vida praticamente normal e ainda casado, morando numa mansão?
Na semana passada, por causa da notícia do casamento, algumas sobreviventes de João Teixeira de Faria me procuraram, tristes, frustradas e por vezes aos prantos. A sensação de muitas delas é a de que falta reparação, de que fizeram tudo o que fizeram — expuseram-se, repetiram relatos que as machucam, sentiram medo e vergonha — à toa. Como se dissessem: não foi tão grave assim, vida que segue. Mas a vida delas nunca mais será a mesma. É um tapa na cara.
E sobre a sua frustração? O que mais a revolta?
Para mim, a sensação de que João Teixeira de Faria segue sua vida normalmente ressalta a desimportância dada aos crimes sexuais, à violência de gênero e ao próprio corpo da mulher. Como vamos parar outros agressores se o maior criminoso sexual de que se tem notícia no Brasil não fica preso mais do que 15 meses? É frustrante ter feito uma extensa pesquisa para denunciar abusos que se perpetuaram por décadas, e pensar que essas acusações não reverberam na Justiça. Ainda há muitas perguntas sem respostas, e muitos cúmplices que nem sequer são investigados. Também me preocupo com as mulheres que foram vítimas de João — a reparação na Justiça é muito importante para a superação do trauma.
Que associação pode ter com a violência contra a mulher no Brasil? Pode demonstrar uma certa banalização?
Certamente, é uma banalização que não vem só do sistema de Justiça, mas de toda a sociedade — dessas pessoas que minimizam as violências, ou da imprensa que deixa de cobrar punição, que se “esquece” desse tipo de cobertura. Para voltar ao “casamento da semana”: além de tudo, a mulher que se casou com João Teixeira de Faria é advogada e tem um posto de conciliadora auxiliar no Tribunal de Justiça de Goiás. Não há vínculo empregatício e nada que a vincule aos processos do agora marido — ou seja, nada ilegal nisso. Mas é moral, é ético?
Você se atualiza sobre o caso, que sentimentos se mantêm de quando estava no auge das apurações?
Quando demos a notícia pela primeira vez, eu e a repórter Helena Borges, no Globo, uma dezena de mulheres nos contaram os abusos que sofreram na Casa de Dom Inácio de Loyola. Naquele momento, não podíamos imaginar a dimensão que o caso tomaria. Já quando eu estava na apuração para o livro, o cenário era muito diferente: ele estava preso, e já se sabia que as acusações de estupros passavam de 300, cometidos ao longo de mais de 40 anos. Naquele momento, o meu sentimento era de incredulidade diante de uma cidade que sabia dos crimes sexuais e fazia silêncio para proteger o seu líder — por fé ou por dinheiro, mas, com ele preso, havia nas vítimas a sensação de reparação. Hoje, se por um lado eu divido a indignação com muito mais gente, graças à repercussão do livro, por outro, a frustração pela falta de reparação aumenta na mesma proporção.
Em abril agora, o jornal goiano “O Popular” teve acesso a documentos da investigação contra o médium, que mostram uma impressionante movimentação de R$ 240 milhões em suas contas bancárias. João de Deus é um homem rico? Ele ganha algo com a Casa Dom Inácio aberta?
O patrimônio de João Teixeira de Faria é, sim, estimado em mais de uma centena de milhões. Ninguém sabe esse número ao certo, nem a Justiça, porque havia, até o momento das investigações, bastante movimentação em dinheiro vivo. Nas buscas, a polícia encontrou, nas residências de João Teixeira e no seu centro espiritual, inúmeros cofres, escondidos em fundos de armário, sob o chão e até no teto. Como a Casa de Dom Inácio segue em funcionamento, com loja de souvernirs que levam até o rosto de “João de Deus” e vende itens como cristais a preços altos, é de supor que ainda ganhe algo com isso, mas é uma informação muito difícil de precisar.
Foto: Leo Aversa