O historiador Arnold Toynbee usou a expressão “minoria dominante”, dizendo: “A civilização enferma paga o ônus pela falência de sua vitalidade desintegrando-se em uma minoria dominante que governa com crescente opressão, mas sem liderança, e em um proletariado (interno e externo) que responde a esse desafio, tornando-se consciente de ter uma alma própria e estruturando-se para mantê-la viva.”
Não é difícil imaginar a dificuldade de se estruturar emocionalmente para manter alguma esperança diante de uma guerra cujos motivos, além da óbvia crueldade, permanecem muito vagos.
A “minoria dominante” na Rússia, liderada por um homem notoriamente ganancioso, proveniente de uma família ligada às infames máfias russas, e que se engaja na não menos infame KGB, associa-se com seus amigos da mesma proveniência, todos hoje em dia bilionários, para disparar uma guerra contra seu vizinho. Tudo isso diante de uma população que, embora contra a barbárie, nada pode fazer e nada faz. Seria a falência da vitalidade da qual Toynbee fala?
Muito ilustrativo é um vídeo que mostra um senhor já de idade avançada esbravejando na frente de soldados russos com metralhadoras na mão: “Eu sou russo como vocês, mas moro na Ucrânia. Vocês estão matando seus parentes e amigos. A mesma frase foi dita no Mahabharata, a epopeia hindu, por Arjuna ao deus Krishna, que era a favor da guerra contra seus vizinhos. Era uma voz perdida, mas ainda profundamente vital, um forte apelo que atravessa séculos de barbárie movida pela onipotência dos que se consideram deuses e assumem posições de governo. Krishna dirigia a carruagem de Arjuna.
Apesar de vivermos num país que sofreu apenas uma vez a invasão de um vizinho (e faz tanto tempo que muitos nem se recordam que isso de fato ocorreu), podemos imaginar o quão catastrófica e o quão sofrida pode ser essa violência. Não deveria haver dificuldade para saber o que é viver sob o constante terror de que sua família e bens possam desaparecer de uma hora para outra, destruídos pelo poder das bombas termobáricas.
Mas é assustador também pensar na semelhança com nosso país, pois esse “líder” ex-mafioso, ex-KGB, amigo de bilionários, não tem nada em seu nome, além de um simples apartamento de 70 metros quadrados em Moscou. O que então o estaria movendo nessa direção tão maligna, se não parece desejar ter muito dinheiro? Seria o poder ilimitado? Como fizeram seus antecessores como, por exemplo, Lenin? Seria algum tipo de insanidade?
Lenin não era louco, assim como Putin não é louco. O que fizeram foi um “golpe de Estado” bem-sucedido, o que demonstra que não se trata de loucura. E sabemos também que golpes de Estado podem ser aplicados de diversas formas, seja através da imposição de uma ditadura, seja como um câncer que se infiltra vagarosamente, colocando corruptos, pessoas sem escrúpulo algum, pusilânimes, notórios perversos, falsificadores contumazes, nas posições mais importantes onde política deveria ser sinônimo de ética.
Em suma, o “totalitarismo” cujas raízes se encontram na busca da onipotência, trava uma guerra interna e externa contra a maioria dos cidadãos, enquanto líderes fazem de conta, como fez Hitler, que se tratava de democracia. Uma guerra que alterna ameaças contra a vitalidade do pensar, ações judiciais para acabar com a liberdade de expressão, ou com ofertas generosas de dinheiro público, financiamentos diretos e indiretos para “drogar” os “apoiadores” e “simpatizantes” do regime.
Disse Freud: “A guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente, não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.”
Arnaldo Chuster é psiquiatra e psicanalista, membro de todas as Sociedades Brasileiras da sua área e ainda do Instituto Psicanalítico de Newport, na Califórnia. Tem consultório em Ipanema e costuma fazer palestras no Brasil inteiro. É também um estudioso do trabalho do psicanalista britânico Wilfred Bion.