Uma das mais evidentes lições da obra de Freud — constantemente estudada e ampliada por seus seguidores — é a existência da mente inconsciente. Em poucas palavras, correndo o risco das simplificações, trata-se de uma espécie de tirano que se impõe o tempo todo sobre nossa vida, delas dispondo tanto no pior quanto no melhor sentido. Claro que concretamente a expressão “tirano” pressupõe uma organização social que o produz, como poderia produzir um gênio ou um místico. Assim, deve ser tomada aqui apenas como uma metáfora do conceito psicanalítico das pulsões inconscientes.
O melhor sentido se exterioriza em criações e o pior: em destruições. Vivemos uma espécie de expectativa idealizada de que as primeiras predominem, e que tenhamos apenas uma disposição criativa. No entanto, a realidade da experiência social-histórica mostra um trajeto de frustrações, cujo sofrimento decorrente dá a partida para a complexidade das doenças mentais e incontáveis doenças físicas. Como lidar com essas frustrações? Fugindo dessa realidade ou modificando-a pela experiência adquirida?
A questão soa simples, mas é extremamente difícil, pois deparamos sempre com a dificuldade para aprender com a experiência, de realizar projetos melhores com os nossos conhecimentos; por isso, assistimos a repetições históricas infindáveis de fórmulas que não dão resultado. A velha história de que “comigo não acontece”, é um bom exemplo da mais velha e terrível mazela humana que impede aprender com a experiência: a onipotência e seu desdobramento como onisciência.
Essa dupla fica muito pior quando se transforma em arrogância, produzindo as famosas “quedas no buraco mesmo sabendo que é ruim e doloroso”. Dar aqui como exemplo o uso de drogas e medicamentos sem critério algum, é lugar comum no trajeto que leva ao desamparo e à miséria.
A psicanálise mostra que o aprender com a experiência está intimamente ligado à capacidade para pensar.
A compreensão desse fato, desenvolvida pela obra de Freud, foi ampliada pelo psicanalista britânico W.R.Bion, pela tese de que a principal característica da organização social são os processos de pensamento. Através do pensar, a psique vincula-se a outras psiques, constituindo o que conhecemos como corpo social, que é uma trama de sonhos, de desejos que interagem, com uma trajetória extremamente complexa e repleta de problemas dolorosos para o ser humano. O sucesso de se tratar uma doença encontra-se na compreensão dessa complexidade e na sua relação com o inconsciente e sua inevitável tirania.
Um exemplo no corpo social ocorre quando teorias políticas, que deveriam seguir ideais humanistas, sofrem a tirania do inconsciente e “encarnam” em uma pessoa ou grupo de pessoas (geralmente chamadas de Partido), através de um funcionamento que anula ferozmente o pensar em nome do prazer egocêntrico. Podemos denominar esse funcionamento de elitismo do tirano, que se atribui onipotência e onisciência por ter sido escolhido pelas urnas, e assim, arrogante, se acha acima dos demais.
Muitas vezes, essas ações contam com a cumplicidade da mídia. As informações são essenciais, mas podem ser tóxicas se atendem a um populismo quantitativo, ou seja, se adotam a ideia do tirano que chama de povo somente aqueles que ele nomeia como povo. Esse fato, que também sustenta a religiosidade, leva à aceitação de ideias sem crítica alguma, e mostra a complexidade da fragilidade do ser humano, sua incapacidade para conhecer o mundo onde necessita sobreviver.
Uma questão frequente e fundamental proveniente dessa assertiva interroga: como surgem pessoas que corrompem, roubam, matam, mentem, distorcem, única e exclusivamente para se manterem, por egocentrismo, numa posição de poder que sabidamente não são mentalmente capazes de sustentar?
Podemos indagar como essa entidade chamada inconsciente, com conteúdos totalmente antissociais, um campo absolutamente egocêntrico, irreal ou antirreal, pode ser transformada pelas ações e pelos continentes instituídos de uma sociedade, em um indivíduo social que possa prezar, em primeiro lugar, a autonomia social e a liberdade de pensamento, e assim falar, pensar e, renunciar à satisfação imediata de seus desejos?
Uma das características principais de qualquer tirania que vem dessa cruel incapacidade para pensar é uma espécie de nebulosa, em que o termo “verdade” não pode ser aceito na sua acepção mais profunda: a de sua conexão inequívoca com a incerteza. Para o tirano não pode haver incerteza, pois, ele simplesmente acredita que a verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só nos resta acatá-lo como seu porta-voz. Ele o faz dizendo que todo mundo mente, menos ele. Ora, se todo mundo mente, menos ele, tudo que ele faz é, de saída, moralmente correto, o que lhe faculta o culto da ação pela ação, impondo o irracionalismo. Por isso, pode roubar, corromper, matar, fazer qualquer coisa desumana, pois ele se justifica por sua “certeza” moral.
Irracionalismo também significa que pensar é uma forma de restrição da ação. Desde modo, a Cultura, expressão do pensar, é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas, ou com o pensar antes de agir. Nessa trilha perversa, a doença se impõe como saúde e vice-versa, o que cria a complexa questão do indivíduo que nem sabe que é doente. Como tratar alguém que nem consegue atingir esse ponto mínimo de saber sobre si mesmo?
O tirano dribla a expressão do irracionalismo, colocando-se como se estivesse ao lado da democracia, mas, na realidade, sem poder pensar o que é democracia (e que exige isso constantemente), o que ele faz é um sincretismo, muito semelhante ao religioso, que camufla as contradições. Assim, ele pode, por conveniência pessoal, aplaudir incoerências. Todavia, não pode existir avanço do saber e da experiência quando se acende uma vela para Deus e outra para o Diabo. Não se avança sem contradições expostas e discutidas. Não se avança com falsidades, fazendo de conta que aceita todo mundo, quando, em verdade, essa aceitação só serve a fins próprios.
Na comunidade científica, o desacordo de ideias é sempre um instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o tirano, porém, o desacordo é uma traição — só serve a sua ideia, o que leva à perigosa situação mais ampla de medo da diferença, que se transforma em medo aos intrusos, aos que não são do Partido, etc. Nesse clima, o racismo é uma consequência e vai se espalhar por vias direta e indireta. Vítimas se tornam carrascos e se locupletam dessa incapacidade de pensar nos direitos humanos, enquanto´, incoerentemente, erguem essa bandeira — uma bandeira sem nação, um estandarte de uma humanidade profundamente insana.
Arnaldo Chuster é psiquiatra e psicanalista, membro de todas as Sociedades Brasileiras da sua área e ainda do Instituto Psicanalítico de Newport, na Califórnia. Tem consultório em Ipanema e costuma fazer palestras no Brasil inteiro. É também um estudioso do trabalho do psicanalista britânico Wilfred Bion.