O mundo está transtornado, uma epidemia devasta o Planeta, e a morte de um homem que não tinha nenhum papel político, artístico ou científico enche páginas de jornais e os noticiários. Era príncipe, um príncipe consorte, marido da rainha da Inglaterra. Aos 99 anos, morreu S.A.R., o príncipe Philip, duque de Edimburgo.
Curioso como príncipes, reis e rainhas povoam a imaginação de parte significativa da humanidade. Se alguém é um craque do esporte, vira rei; uma mulher poderosa, rainha; uma jovem bonita, uma princesa; um jovem bonito e educado, um príncipe. É como se todos os príncipes fossem charmosos e gentis; as princesas, lindas; e os reis, bons no que fazem. Sabemos que não é bem assim; a história mostra bem o contrário. Não importa; os filmes da Disney que o digam, ou a Netflix. Revoluções, democracia, igualdade, liberdade, fraternidade não mataram os sonhos monárquicos nas mentes plebeias.
Reis foram objeto de estudo pra mim. A concepção medieval do rei com dois corpos: um eterno, imortal, público e outro mortal, privado, humano. O rei, como cabeça de corpo social, detentor da majestade. Tive interesse em ordenar todas as dinastias, suas relações, seus parentescos, um quebra-cabeça sem fim, além dos rituais, a lógica política do protocolo, os símbolos, e o lugar de cada um no teatro do poder.
Em 1997, fui chamado pela Globonews para uma entrevista sobre a morte da princesa Diana, para explicar alguns pontos sobre a realeza, descrever os rituais daquele funeral tão marcante. Daí pra frente, casei, enterrei, celebrei jubileus de muitos reis e príncipes. Espantoso como o fascínio e a popularidade deles persistem. São reinventados. Os royals adaptam-se às mudanças sociais e econômicas; príncipes se tornam mais humanos.
Hoje foi a vez de Philip ou Philipus av Slesvig Holstein Sonderburg Glocksburg, príncipe da Grécia e Dinamarca. Assim nasceu o príncipe Philip, que morreu ontem. Abriu mão do nome de sua família dinamarquesa que reinava na Grécia, para se tornar Mountbatten, súdito britânico, e se casar com a herdeira do trono. De uma infância e adolescência difíceis, com educação custeada por parentes ricos, sem pais presentes, aquele príncipe encontrou um norte no rigor de um colégio interno e na escola naval. Ordenação na vida. E por maquinações dinásticas, acordos, interesses e até por simpatia, talvez, casou-se com a herdeira do trono britânico. Abandonou a carreira na Marinha porque sua mulher tornou-se prematuramente rainha. O duque de Edimburgo, título que recebeu, foi um bom funcionário público, como disse o premier britânico, e conhecia o métier.
Philip era mais royal do que a rainha. Descendia de famílias reais, sabia seu trabalho. Não se sentia menor do que a mulher apesar de ter que dar sempre passagem a ela. Ele vinha três passos atrás, mas sabia de onde vinha seu background dinástico — nada a dever a sua mulher. Trabalhou sempre para a família real, de grego passou a ser o mais britânico dos britânicos e viu a monarquia britânica e as monarquias do mundo se transformarem. No último ato, viu o neto desertar, tornar público e mortal o que deveria ser imortal e sagrado — porém humano. Desde a morte de Diana, talvez tenha percebido que a monarquia tomaria outros rumos: sem casamentos arranjados, sem um rei ou príncipe distante, imortal. Tornaram-se todos mortais, com sentimentos rancorosos, queixas, ciúmes, vingativos, enfim, humanos. Príncipes Hamlets, princesas mundanas, príncipes pervertidos e corruptos.
Agora, morre Philip. Talvez seja o fim de um tempo — tempo das monarquias idealizadas, das rainhas e princesas belas e recatadas. Ou não. “Existirão só cinco reis no mundo: os do baralho e o da Inglaterra”, dizia o rei deposto Faruk, do Egito. É possível que sim. E, ao invés dos modelos de Mariannes e Marielles, muitas mães continuarão a criar suas filhas para serem princesas à espera de príncipes — como Phllip, o macho alpha. O ser humano não é muito original. Philip é o elo de uma corrente que parece não estar pronta para se romper. Acho que muitos casamentos e funerais ainda virão.
Francisco Vieira é mestre e doutor em História (respectivamente pela UFRJ e UFF), além de pesquisador e consultor — como, por exemplo, da novela de época “Novo Mundo” (2017), da TV Globo. Também é constantemente convidado a falar sobre fatos históricos, acontecimentos de época e casamentos reais na Globonews. Costuma ter como lema a frase “não saber história é estar condenado a repetir erros”.