Mais uma vez, o cenário brasileiro se choca com a barbárie. Parece não haver escassez desse artigo em nosso país. Trata-se agora de um vereador do Rio de Janeiro, conhecido por Dr. Jairinho que, juntamente com sua mulher, assassinaram o filho dela. Só se tem notícia dos requintes de crueldade do ato, em tempos recentes, naquela praticada por nazistas em campos de concentração.
Infelizmente, porém, não fica restrito aos nazistas: o ato vem fazendo parte do lado mais sombrio da história da humanidade. O lado da humanidade que quer aniquilar a si própria, matar todas as esperanças e sonhos, enfim tudo que uma criança pode significar.
Na psicanálise, ideias em torno do tema foram abordadas, de forma muito profunda, pelo psicanalista francês, já morto, Serge Leclaire. Ele assinala que essa é a ideia mais inquietante, mais evitada e mais terrível de todas. Sua origem fica sempre conectada às ideias que Freud chamou de pulsão de morte e narcisismo primário.
A ideia é tão dolorosa e terrível que até mesmo a maioria dos autores psicanalíticos, que se detiveram no estudo do mito do Édipo, pensaram nas questões do parricídio e do incesto, deixando de lado a tentativa de infanticídio, que é fundamental na trama.
Além do mito de Édipo, o infanticídio tem sido representado em muitos mitos. Podemos lembrar a história de Abrahão na Bíblia; o rei Herodes, que manda matar crianças com receio que, dentre elas, surgisse o novo rei dos judeus; o faraó Ramsés, mandando matar crianças judias que poderiam tomar o trono.
Contudo, em todos os mitos, existe o sentimento de compaixão, seja por parte de Deus, que impede Abrahão de cometer o ato, seja dos pais de Jesus, que amorosamente o protegem, fugindo para outra cidade, seja da irmã de Moisés, que o coloca num cestinho no rio Nilo, para uma princesa adotar o menino.
Além do mais, essas histórias revelam algo que faz parte do dia a dia do psicanalista, que são os impasses e os fracassos do amor — o fracasso do amor dos pais pelos filhos; os filhos como vítimas do desamor dos pais. Mas o que causa esse fracasso? Leclaire nos explica que é o confronto dos pais com “Sua Majestade, a criança”, que reina como um tirano onipotente. Ou seja, o destino vai depender de como os pais podem lidar com o que o tirano desperta. Ao entender e ajudar a minimizar a tirania da criança, os pais podem abrir espaço para o amor e renunciar ao narcisismo poderoso. Num certo sentido, acontece para os dois lados, pais e filhos.
Contudo, o que acontece se o sentimento despertado é puramente inveja da criança maravilhosa? Uma inveja sem o seu neutralizador que seria a gratidão pelo que uma criança traz ao mundo. Essa inveja se transforma numa espécie de câncer mental e vai destruindo e torturando tudo, culminando na morte real da criança. Para esses assassinos de crianças, cabem aqui as palavras de Shakespeare em Macbeth: “A vida nada mais é do que uma sombra que caminha, um miserável ator que se exibe e se agita em sua hora em cena, e depois não é mais ouvido. É como um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, sem significado algum.
No invejoso miserável, a vida é uma sombra que caminha. Ele só precisa ser ouvido por uma criança que sofre com suas agressões e, quando consegue não ser mais ouvido pela criança, que morreu, nada sente, pois foi um ator em cena, representando um papel. Se lhe perguntarem o que a criança disse em sua agonia, vai perversamente dizer: foi apenas um lamento idiota de uma criança chata, cheio de som e fúria, sem significado algum.
E aí, juízes e advogados, vão mandar para a segunda instância nunca condenar e nunca prender?
Arnaldo Chuster é psiquiatra e psicanalista, membro de todas as Sociedades Brasileiras da sua área e ainda do Instituto Psicanalítico de Newport, na Califórnia. Tem consultório em Ipanema e costuma fazer palestras no Brasil inteiro. É também um estudioso do trabalho do psicanalista britânico Wilfred Bion.