No sábado (27/03), foi comemorado o Dia Mundial do Grafite, arte que, contraditoriamente, tira e coloca muita gente nas ruas. Nascido na periferia de São Paulo, o grafiteiro Eduardo Kobra ganhou o mundo com sua arte colorida, de cunho social e político. Impossível passar despercebido por um dos seus trabalhos — seja o “Etnias — todos somos um”, no Porto Maravilha (que se tornou o maior grafite do Planeta, entrando para o Guinness Book, o livro dos recordes, em 2016); ou numa homenagem aos bombeiros que atuaram no 11 de setembro de 2011, num prédio de Nova York; ou ainda ao encarar um Albert Einstein ao lado de Nelson Mandela, Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá no painel “Olhares da Paz”, em São Paulo; uma homenagem a Anne Frank, em Amsterdã (Alemanha). E um mural recente em homenagem às vítimas da covid, criado no ateliê em Itu (SP), com crianças do mundo inteiro usando máscaras com símbolos de várias religiões: Cristianismo, Budismo, Judaísmo, Islamismo e Hinduísmo.
Tudo isso interligado à essência Kobra: ele usa a arte para transpor barreiras. No cenário atual, ela foi um antídoto contra a pandemia e a superação de conflitos pessoais. Há pouco mais de um ano, Catarina, a segunda filha do artista, com a mulher, Andressa Munin, nasceu com sete meses, devido a uma condição rara, e morreu 10 horas depois do parto. Eles também são pais de Pedro, de 4 anos.
Em seguida, veio a pandemia, cancelando sua agenda de trabalho no Brasil e no exterior. Além disso, na quarentena, Kobra apresentou as sequelas de uma doença que tem há cerca de 20 anos: a intoxicação por metais pesados das tintas e solventes. Em vez de se render, foi um dos que encontraram na arte um sentido para seguir e ajudar as pessoas. Ele começou a tocar projetos sociais, incluindo o leilão de dois trabalhos: um para o Instituto Butantan, em São Paulo, e outro para a Fiocruz, no Rio. Além disso, com o leilão da obra “Respirar”, feita em um cilindro de oxigênio, conseguiu montar duas usinas de oxigênio para a região do Amazonas.
Qual seria o seu diário de quarentena?
Difícil, mas renovador. O que acontece é que venho pensando também em produzir telas e me dedicando a algo que, há muito tempo, eu gostaria de fazer: a criação do meu instituto. De 2019 para cá, eu tive mais de 40 convites internacionais. Estava em um momento produtivo da minha carreira, até que veio a pandemia. Eu tinha obras importantes para tocar, como a fachada do World Trade Center, em Nova York, e outras tantas na Europa, na China e nos Emirados Árabes. Estava muito entusiasmado e, obviamente, fiquei bem triste, deprimido até. Em janeiro do ano passado, meu bebê morreu, e isso tudo culminou para uma série de fatores emocionais e psicológicos. Então, venho usando este momento para aprender. Eu estava deixando de lado alguns amigos e familiares; então aproveito este momento para estar mais presente com as pessoas que amo.
Como está a produção?
Eu sou um cara livre; não sou um artista acostumado a ficar confinado em um ateliê. Meu trabalho acontece nas ruas, mas há uma vertente da minha obra que acontece dentro de um estúdio, que são as peças originais. Então, para cada mural que faço, tenho uma tela que representa o original. O que acontece é que eu sempre gostei de pensar na cidade, na arquitetura e na parte urbanística. Realizar intervenções nessas áreas públicas é uma grande satisfação como artista. A grande mudança na pandemia é que inverti as questões e tenho me dedicado muito mais às obras dentro do estúdio, e menos aos murais. Fazia, em média, dois murais por mês, mas, em 2020, foi pouquíssimo. Até porque sou grupo de risco: tenho vários problemas de saúde e acabei me resguardando. Mas também usei esse período para fazer as maiores obras sociais da minha história.
E como se sente com isso?
Posso explicar a questão da sensibilidade social como se fosse um filme que passa por toda a minha trajetória. Particularmente, eu sempre me preocupei em passar mensagens de pacifismo, da importância da preservação ambiental, defesa das liberdades, combate ao racismo, toda forma de preconceito. Outro ponto é que sou nascido e criado na periferia de São Paulo, da qual tenho muito orgulho; então tenho esse olhar para as populações mais vulneráveis. Usei esse caminho não só por questões estéticas ou mensagens que tento passar, mas também para transformar tudo isso em algo material, com um propósito de transformar a vida de crianças e adolescentes marginalizados. E, talvez, o projeto embrionário disso tudo tenha sido o da “Galeria Circular”, onde, há um ano e meio, fiz um museu itinerante num ônibus e o coloquei para rodar as periferias e favelas de São Paulo. Para mim, não há diferença entre pintar num lugar nobre — como a Times Square, e lugares chiquérrimos por onde já passei, como Hollywood e Emirados Árabes — e pintar numa comunidade carente. Tive muito prazer em pintar numa parte muito pobre da Índia e também no Malaui, onde pintei um hospital pediátrico a convite da Madonna.
O setor cultural foi um dos mais afetados. Aconteceu com você?
No início, tive uns 50 trabalhos cancelados, pelas minhas contas, o que me afetou bastante. Resolvi levantar a cabeça, me dedicar mais, porque venho dessa história de luta em que nunca pude contar com o apoio de ninguém. Foi um momento de transformar mesmo, aprender sobre valores, princípios. A grande mudança foi a questão social. Fiz poucos trabalhos internacionais nos últimos anos, mas me orgulho em dizer que fiz muitos sociais no Brasil. A obra “Coexistência”, por exemplo, através do leilão, me permitiu ajudar cerca de 20 mil pessoas em situação de rua. Já com “Respirar”, feita em um cilindro de oxigênio, conseguimos montar duas usinas de oxigênio lá para a região do Amazonas.
Você não é representado por nenhuma galeria ou agente. Por quê?
É uma decisão pessoal, também pela dificuldade de conhecer pessoas sérias para tocarem esse meu projeto de vida, que exige dedicação total. Tive que lutar com minha própria espada, e isso, ainda hoje, é muito difícil. Mas vale dizer que são 30 anos fazendo o mesmo trabalho, e isso me deu experiência. No início da carreira, trabalhei muito como contratado para pagar a conta de água, investir em tintas e no meu desenvolvimento. Já tive parcerias com algumas galerias, que duraram pouco tempo, porque não achei pessoas com as quais me identificasse. Tenho representantes também fora do Brasil, que me ajudam nas parcerias. Estar num país onde o setor cultural é, assim, mais difícil, exigiu de mim lutar muito, e ainda luto todos os dias. Sempre acordo cedo, querendo pintar, criar, viajar, me esforçar, buscar novas tecnologias e melhorar meu trabalho. Tendo a minha origem, sem falar inglês, tive as portas abertas em lugares que eu nunca imaginei — poder chegar a cinco continentes é um orgulho. Só nos Estados Unidos, tenho cerca de 50 murais. Ocupar as ruas das cidades é algo que eu penso com muito cuidado. Sou um eterno aprendiz.
Como funciona seu processo criativo?
Intuitivamente. Revelação é uma outra palavra que posso usar, mas provém de muitas fontes, porque sou um eterno curioso, estou sempre pesquisando, lendo, assisto a centenas de documentários e filmes. Também vejo tudo sobre paisagismo, arquitetura, arte contemporânea, arte clássica, intervenções públicas, todo tipo de história. Gosto muito de me aprofundar nas histórias dos países por onde passo, faço realmente essa imersão para conseguir chegar ao resultado. Meu celular tem um bloco de notas com mais ou menos três mil anotações de tudo que vejo de positivo, negativo, algo que comentaram comigo, um filme, uma leitura, algo que me toca ou choca. Tudo isso vira um desenho num papel, depois, uma tela no meu ateliê e, por fim, um mural na rua. Muitas vezes, esses murais são feitos de forma voluntária; outras, não, já que empresas me contratam.
Como avalia o Rio na cena da arte de rua?
O Brasil está na vanguarda do street art, em cidades como São Paulo e Rio. O Rio, inclusive, é muito peculiar nessa questão. A movimentação nas ruas cariocas já acontece há várias décadas, com muitos artistas que acabam se destacando pelo uso de materiais diferenciados pela falta de recurso. O Rio me mostra que a arte está em todas as partes e que você não precisa ter cursado faculdade para ser artista. Arte é algo que vem de dentro para fora, do coração, da alma, daquilo que você é. Visito muitas favelas, e arte aí ferve, está no DNA do carioca.
O que diria para um jovem da periferia que, assim como você, sonha em ser artista?
Segundo uma agência que cuida de direitos autorais no mundo, meu trabalho é hoje o segundo mais licenciado para livros didáticos. Sou sou um artista autodidata. Eu diria para um jovem artista que a informação, a busca, a literatura e o esforço pelo conhecimento são indispensáveis. É claro que tive nas mãos ofertas para o mundo do crime e das drogas; a maioria dos meus amigos que foram por esse caminho acabaram presos ou morreram. O meu foi buscar a arte, os meus sonhos. O que eu diria é para ter fé em Deus, fazer a coisa certa, estudar e evoluir. E o principal: não desista dos seus sonhos.
Você está otimista com a vacinação?
Muito triste ver que muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Lamento por tantas famílias destruídas neste período da pandemia que, infelizmente, depois de um ano, ainda quebra recorde em número de mortes. Tenho feito um trabalho nesse sentido, em manter a fé e a esperança. As vacinas já estão aí, estão chegando. Pode demorar um pouco mais, mas temos que nos proteger para proteger o próximo: é uma ação coletiva. Estamos vivendo o momento em que um é responsável pelo outro.
Por Acyr Méra Júnior