As vaquinhas virtuais foram a solução pra muita gente na pandemia; vários projetos foram financiados, ou simplesmente sobreviveram. No entanto, essas correntes solidárias vão muito além do que fazer um depósito num site.
Aí é que entra a carioca Tati Leite, criadora da Benfeitoria, uma das principais plataformas de financiamento coletivo. Só nos últimos oito meses de pandemia, a plataforma abrigou mais de quatro mil projetos que tiveram 60 mil apoiadores contribuindo com R$ 130 milhões no total — um crescimento de 250% do mesmo período de 2019, isso contando com os aportes chamados “matchfunding”, em que grandes empresas ou organizações de investimento social privado duplicam ou triplicam a doação feita por cada pessoa física.
Mas como eles chegaram a esse modelo? Até 2011, Tati e o marido, Murilo Farah, trabalhavam no marketing da Coca-Cola – era pouco. Ela pediu demissão, e Murilo ficou por mais alguns meses, para dar suporte financeiro aos sonhos. “Queríamos divulgar uma cultura mais humana, colaborativa e realizadora, então entendemos a Benfeitoria como um laboratório de inovação cultural”, explica Tati.
Quase 10 anos depois, a plataforma é um exemplo do modelo e, entre tantos projetos, está o “Bossa Nossa”, para artistas e produtores culturais do Rio, criado ano passado e que já arrecadou mais de R$ 3 milhões, como exemplo, a vaquinha que salvou a rede de cinemas Estação, e também o “Matchfunding BNDES+ Patrimônio Cultural — Edição Lab”, pensado para os Patrimônios Culturais materiais e imateriais de todas as regiões do Brasil. Esse edital vai receber projetos que queiram usar a Internet como ferramenta para ir além na interação do público com os patrimônios, com inscrições abertas até dia 18 de dezembro.
Você largou uma multinacional para arriscar num sonho. Arrepende-se?
À época, isso era muito novo, e ninguém tinha coragem de largar seus empregos. Deu muito frio na barriga, mas foi um projeto gestado durante muito tempo. Eu saí da empresa nove meses antes de a Benfeitoria nascer e ainda não conhecia o crowdfunding. Sabia que queria dedicar meu tempo a algo que construísse algo para o mundo. A gente brinca que o negócio da Benfeitoria era NSDF (Nossa Senhora dos Fluxos). A gente fechava uma consultoria, ganhava uma grana e, quando estava prestes a desistir, algo acontecia. Foi uma mistura de sorte, trabalho, dedicação e muito privilégio porque pudemos nos dar o luxo de ficar anos sem ganhar salário porque juntamos dinheiro pra isso. Empreender é muito desafiador, numa área inovadora que se mistura com social, mais ainda, porque as pessoas acham que tudo tem que ser de graça.
Mas como chegou ao financiamento coletivo?
Fui pesquisar o que estava acontecendo no mundo, e tinha um movimento de uma nova economia surgindo, os Airbnb, os KickStarters, muito além do crowdfunding. Isso não existia no Brasil. Nosso primeiro projeto não se chamava Benfeitoria, mas o Mirabolatório, que trabalharia com toda a cadeia criativa, desde inspirar as pessoas a ser criativas para viabilizar isso e, no meio, tinha o crowdfunding. Fiz faculdade de Administração, mas as aulas de empreendedorismo não me prepararam para isso, nem a Coca-Cola.
As pessoas viram com desconfiança? Como aconteceu a virada?
A gente teve uma receptividade muito grande desde o começo. Existia um estranhamento do nosso modelo de negócio porque a gente era a primeira plataforma gratuita do mundo. Teve um dia que um projeto queria colaborar, daí pensamos num esquema de comissão livre. A pessoa escolhe quanto quer pagar, de 0% a 10% do valor arrecadado. E, até hoje, seguimos assim. Na pandemia, esse modelo foi uma das demonstrações mais bonitas porque tivemos um aumento absurdo de projetos, mas uma queda financeira na comissão voluntária já que estava todo mundo ferrado, precisando de cada real. Ao longo do tempo, o crowdfunding foi crescendo porque é um mercado em expansão e começa a ganhar corpo para ser a nossa fonte de receita principal, ainda que no modelo de comissão livre. O primeiro ano que vamos ter lucro de verdade é este, dez anos depois.
A comissão livre é a única fonte de receita de vocês?
Criamos o modelo híbrido, que tem tanto receita do crowdfunding como de parceiros corporativos – em que o BNDES é um deles. Ele não remunera um projeto a partir de comissão, ele paga uma taxa para a Benfeitoira porque, para eles, é muito mais do que uma plataforma de crowdfunding. Somos uma agência de impacto. Criamos toda a identidade visual, todo o conceito de comunicação, todo o planejamento do programa, que está indo para o 3º ano. O DNA mirabolante lá do início está muito forte.
Podemos dizer que as plataformas de financiamento coletivo foram essenciais, ainda mais, na pandemia. Quanto vocês cresceram desde março e que tipo de perfil de projetos foram os mais presentes?
Foram mais de quatro mil projetos e R$ 130 milhões arrecadados. Aumentou em dez vezes a quantidade de vaquinhas e só em cinco vezes a arrecadação.
E a importância dos matchfunding?
No “Salvando vidas”, por exemplo, o BNDES dobrava a arrecadação para as compras de EPIs nas Santas Casas do Brasil. E eles estavam dispostos a dobrar até R$ 50 milhões. Isso nunca tinha acontecido antes numa plataforma de financiamento. A Eletrobrás doou, sozinha, R$ 20 milhões, o que foi dobrado pelo BNDES. Então, esse dinheiro não passou por aqui, mas era refletido na campanha; era sobre o quanto foi mobilizado para a causa. E tem também o Edição Lab do BNDES+, o maior programa de fomento via financiamento coletivo para patrimônio cultural no Brasil. Imagina neste momento, depois da pandemia, com tantos museus fechados, como essa área sofreu! Na pandemia, ficou muito visado o social, mas o cultural sofreu muito. Como exemplo, tem o crowdfunding da coletiva “Queermuseu” na EAV do Parque Lage, em 2018, que captou mais de R$ 1 milhão.
Teria como escolher um projeto predileto?
O programa ‘Enfrente’, um canal de matchfunding que foi desenhado a longo prazo para triplicar a arrecadação de projetos da periferia em parceria com a Fundação Tide Setubal. Fizemos uma chamada com meta de R$ 350 mil e estávamos indo para a captação, daí veio a pandemia. Tivemos que reformular o edital, que a Tide abriu para outros parceiros, e subiu para R$ 5 milhões. O projeto convocou mais de 200 iniciativas financiadas durante a pandemia e foram R$ 7 milhões mobilizados por 11 mil pessoas. É muito simbólico em vários sentidos. Esse canal teve uma taxa de sucesso maior do que a plataforma. O crowdfunding é sobre a potência dos encontros, e isso é absolutamente emocionante. E tem o ‘Bossa Nossa’, que salvou a rede de cinemas Estação, que foi além da grana — valeu pelo movimento das pessoas, a paixão.
As vaquinhas são o futuro?
Não é a resposta pra tudo. Um financiamento coletivo depende de uma rede ‘bancarizada’, acesso à Internet, e isso não é realidade em todos os territórios do Brasil. Então, a coisa mais importante é ter uma rede, tem que divulgar, bater de porta em porta. É trabalhoso. Mas, por outro lado, é a solução para muita coisa porque aquela vaquinha pode abrir portas para um artista ficar mais conhecido. Em vez de você cobrar pela arte, você convida a fazer parte dela — é outra relação. Mas o crowdfunding é uma inovação que chegou para ficar e só tende a crescer, mas não é melhor do que outras formas de arrecadação. Têm causas que precisam de fomento direto, e não podemos reduzir a filantropia num País tão desigual quanto o Brasil.