A próxima Flip (Feira Literária Internacional de Paraty) iria homenagear a poeta Elizabeth Bishop. Não vai mais.
O fato de Bishop ser mulher contava ponto. Ser lésbica, mais ponto ainda. Mas como chamou o golpe de 64 de “revolução rápida e bonita” (isso quatro dias depois de o movimento ter acontecido e anos antes de se tornar uma ditadura), seu nome recuou 15 casas, o jogo virou e a Bishop é peça fora do tabuleiro.
Gente que nem foi convidada informou que não iria se ela fosse. Gente que é contra a xenofobia declarou que não fazia sentido homenagear uma estrangeira. A feira pode até ter “internacional” no nome, mas vale a reserva de mercado.
Saramago teria sido uma escolha interessante — afinal, era comunista, o que valeria como uma espécie de desagravo. Mas branco, macho, hétero e, ainda por cima, europeu… Não, não há Nobel que dê jeito.
Euclides da Cunha escapou por pouco de ser rifado em 2019. Afinal, seria machista e racista — o que pesa mais que “Os sertões”. Nelson Rodrigues, Hilda Hilst e Clarice Lispector eram tabagistas — e o tabagismo, como todo mundo sabe, é um vício capitalista (todos os vícios são capitalistas, não?).
Dos dezessete homenageados até hoje, só 3 eram mulheres. Logo, é bom esquecer João Cabral, Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Gregório de Mattos, Paulo Leminski, João Ubaldo.
Só 2 eram negros: Machado de Assis e Lima Barreto (Mário de Andrade, assumidamente mulato, não conta). Sem chance, portanto, de se pensar em Moacyr Scliar, Manoel de Barros, Mário Quintana, Haroldo de Campos, Pedro Nava, Ferreira Gullar.
Heterossexuais foram a maioria esmagadora (só Mário de Andrade era gay, eu acho). Caio Fernando Abreu e Lúcio Cardoso poderiam ser uma alternativa – não fossem eles machos, brancos e cis.
O ideal seria uma mulher trans. De preferência indígena. Mas teria que ter escrito alguma coisa — e estar morta. Não há registro de alguém com tal currículo.
Uma opção seria passar a homenagear autores vivos. Ou autores que ainda não tivessem escrito, mas levassem jeito para a coisa. Em vez de homenagem póstuma, homenagem prétuma (não, a palavra não existe: teria que ser inventada para a ocasião).
Em último caso, poder-se-ia pensar em uma feira paralela – em Angra, por que não? A Flangra escolheria o agraciado tão somente pelos méritos literários. Como no jogo do bicho, vale o que está escrito. Poderia ser Cecília Meireles, Júlio Cortázar ou Castro Alves. Luís de Camões, Cruz e Souza ou Campos de Carvalho. Raquel de Queiróz, Emily Dickinson ou Italo Calvino. Antônio Callado, John Donne ou Fernando Pessoa.
Se a Flangra se deixasse levar por critérios pouco ortodoxos, partiríamos para a Flimangaratiba ou para a Flitaguaí. Se nem assim desse certo, ainda haveria a esperança de na Flitarituba, na Flitaquari ou na Flijacuecanga haver espaço para os artífices da palavra, fosse qual fosse seu gênero, orientação sexual, crença, cor de pele, naturalidade, ideologia.
Já pensou que maravilha: uma feira literária internacional que fosse realmente internacional e essencialmente literária?
(Foto: Lu Lacerda)