A peste, como realidade e metáfora, está presente no mito que mais engloba e traduz a realidade psíquica humana: o mito de Édipo. Freud utilizou esse mito para descobrir a psicanálise, oferecendo-nos múltiplas possibilidades — hoje e sempre — para pensar nos fenômenos psíquicos que caracterizam e configuram a mente humana.
Conta-nos o mito que, por causa da morte do rei Laio, de Tebas, a peste, sob a forma de uma Esfinge, instalou-se nas portas da cidade, impondo um isolamento social aos jovens — eles não podiam entrar nem sair da cidade. Havia um grande perigo na presença daquela leoa alada com rosto de mulher, causada por um passado de equívocos e escolhas intempestivas.
A imagem da Esfinge pode ser interpretada de diversas formas. Além de, obviamente, sugerir a atual pandemia que assola o mundo, outra seria uma representação do poder real, pois a rainha Jocasta assumira o trono com a morte do marido. Todavia, a Esfinge fazia algo mais: ela legislava acima da soberana e, ao mesmo tempo, executava a pena. Nesse aspecto, temos semelhança com instituições jurídicas.
Conta uma das versões do mito que a Esfinge foi enviada de sua casa, na Etiópia, pela deusa Hera (os antigos gregos atribuíam uma origem estrangeira à Esfinge). Hoje, não é a Etiópia, mas pode ser a China, país que tem enviado várias pestes: em 1957, a gripe asiática; em 1968, a gripe de Hong Kong; em 1997, a gripe aviária; em 2003, a SARS; e agora, em 2020, a pandemia do covid-19. Ou seja, cada uma pior que a outra.
A Esfinge, como representação de uma instituição instalada às portas da cidade, controlava e confrontava tiranicamente os jovens ao lhes fazer uma pergunta, com uma advertência: “Decifra-me ou te devoro”.
A advertência, traduzida para os dias de hoje, pode ser lida assim: ou você encontra uma cura para a peste, ou você morre. A única alternativa, enquanto não havia cura, era o isolamento social. Essa experiência, porém, era vivida como sofrimento e, também, como doença.
A Esfinge perguntava: “Que criatura, pela manhã, tem quatro pés: ao meio-dia tem dois e, à tarde, tem três?”. Quem não respondesse ela estrangulava; daí a origem do nome Esfinge, derivado do grego “sphinx”, que significa esfíncter, ou músculo que estrangula. Em outras palavras, as vítimas da Esfinge morriam sufocadas, sem ar, como ocorre, hoje, com os casos graves do vírus chinês.
Édipo resolveu o enigma, respondendo corretamente, tal como um médico: trata-se da vida do homem — engatinha quando bebê, anda sobre dois pés na idade adulta, e usa uma bengala quando é ancião. Furiosa com a resposta, a Esfinge comete suicídio, atirando-se de um precipício. Essa atitude pode ser interpretada como sendo a arrogância da Esfinge, mal que está frequentemente presente nos incontáveis discursos contraditórios e monstruosos dos políticos dos nossos dias. A Esfinge é a parcialização das explicações, a crítica pela crítica, a crítica pelo ódio.
Édipo é a representação de nossos “pecados”, nossas falhas humanas, nossas neuroses e problemas emocionais. Ele representa tudo o que fazemos para dizer que “não é comigo que está o erro, e sim com os outros”. No entanto, Édipo é também um herói trágico, a parte mais íntima dentro de nós que carrega nossas vicissitudes e sofrimentos humanos.
Édipo é aquele que mostra a solidão do homem perante o seu destino, portanto, ele causa horror, pois revela que todos nós estamos condenados a ter uma mente edípica. Desse modo, engloba os que cometeram os pecados (roubaram, corromperam e, indiretamente, mataram com esses atos), bem como aqueles que o tratam como herói salvador e que alimentam sua idealização.
Qualquer indivíduo, numa difícil posição de destaque, como Édipo, pode ser, para muitos, idealizado e heroico ao enfrentar a Esfinge, e, para outros, o indivíduo satânico que desafia as regras do “stablishment” tradicionalista e enigmático. Édipo arrisca-se sempre, pois carrega em si duas versões psíquicas contraditórias: as corretas e as reais.
Cabe ao psicanalista tentar entender como as versões se encontram, chocam-se, trazem conflitos sérios, e não usar a psicanálise para fazer discurso de sua preferência política, pois a psicanálise nos mostra que, sempre, deparamo-nos com esse lugar de encontro complexo que não pertence particularmente a ninguém, apenas ao humano — demasiadamente humano —, sem distinções de raça, gênero, religião, ou preferencias políticas.
As escolhas têm raízes inconscientes, originadas e influenciadas pelos conflitos edípicos infantis. Nesse sentido, o da ética: “Não faças ao teu próximo o que não gostarias que fizessem a ti”. Fazendo isso, talvez, um dia, possamos encontrar soluções menos hostis entre as partes em conflito.