Certa vez, o poeta Manoel de Barros escreveu: “Desde o começo do mundo, água e chão se amam e se entram amorosamente. E se fecundam. Nascem os peixes para habitar os rios. E nascem pássaros para habitar as árvores. As águas são a epifania da criação”.
O poema me veio à mente, depois do problema da água envenenada no Rio. Todos os meus analisandos tocaram aflitos no assunto; todos os meus familiares e amigos falam nisso com indignação, tristeza e revolta. Não seria de esperar outra reação.
Se tomo Manoel de Barros como paradigma, torna-se nítido que os governantes responsáveis romperam esse vínculo amoroso entre a água e a terra em que vivemos. Mas, por que fizeram isso ou deixaram acontecer?
Certamente que eles vão argumentar que são homens públicos bem-intencionados, perseguidos pela mídia tendenciosa e que não sabiam o que estava se passando debaixo de seus narizes. Essa mídia não deixa de existir — está até, cada vez mais, atuante. Contudo, convenhamos: a mídia tendenciosa não fica inventando fatos dessa ordem; não tem imaginação nem inteligência para isso. O fato é que, diante da magnitude do problema, não adianta a desculpa de que não sabia de nada.
Há muito, uma hipótese me acompanha: o Rio, com raras exceções, elege governantes que parecem odiar a cidade. Você, turista, verá isso quando passar nas inseguras vias principais. Verá as ruas esburacadas e os meios de transporte deteriorados. Verá muito lixo nas ruas, e pessoas jogadas como tal, embaixo de todas as marquises. Verá a Avenida Niemeyer, um cartão-postal, fechada por um contencioso em obras públicas, sendo que uma das partes nada entende de engenharia.
Essa parte alega o risco de desabamento, mas onde estavam esses senhores quando as construções irregulares se multiplicaram na terra-do-nada-se-paga, além da milícia que a “protege”. Também aí, o vínculo entre água e terra foi rompido por quem mais deveria protegê-lo.
Certamente, minha hipótese cria um embaraço de pensamento, abrindo uma discussão que me faz sentir inquisitório, ao dirigir o foco somente para os governantes. Por isso, devo também mencionar o cidadão que constrói esgotos irregulares, joga sujeira e lixo em todos os lugares, e tudo vai para as águas. E convenhamos, para todos os casos, que pobreza é distinta de miséria — existem ricos miseráveis que destroem igualmente o meio em que vivem.
Portanto, considero que os pontos fundamentais da minha hipótese clamam pela existência de uma ética natural, baseada no amor entre água e terra, para ir ao encontro de princípios que respeitem o futuro. Esta outra ética não pode deixar de reconhecer que os princípios naturais foram esculpidos em nosso coração, a partir de um programa de salvação e resgate da vida, pois, quando se vai contra a vida, chega-se ao eticamente intolerável.
O eticamente intolerável estabelece o nosso limite e põe em questão a nossa própria identidade de cidadão. Por outro lado, decidir o que é intolerável nem sempre é fácil. De qualquer forma, não podemos compactuar com a irresponsabilidade e as retóricas vazias.
Ao compartilhar essa hipótese, baseio-me na existência de um conceito psicanalítico que se chama “superego assassino”. Esse superego, como o seu próprio adjetivo indica, muito assustador, desenvolve “regras” e “leis” inconscientes para exterminar o que encontra em seu caminho. Exemplos marcantes são os ataques a populações, ou o que se chama de genocídio.
Se alguém envenena a água de uma cidade — ainda que involuntariamente —, isso é tentativa de genocídio. Se alguém acumula água podre numa barragem e não cuida, e deixa vazar, como fez a famigerada Vale, acaba cometendo genocídio e exterminando cidades inteiras.
Sabemos que a história da humanidade sempre foi pródiga em tolerar muitos extermínios de populações. Até que ocorreu o Nazismo, e a existência do Holocausto colocou um novo limiar de intolerabilidade.
O que causou esse corte histórico foi o fato de ele ter sido respaldado por teorias “científicas”, com demanda explícita de consenso público, até mesmo filosófico, e foi propagandeado como modelo planetário.
Aqui, no Brasil, surgiram simpatizantes do Nazismo, e ainda existem muitos, nos mais diversos setores e partidos (inclusive naqueles que se dizem progressistas), e eles continuam usando retóricas e justificativas, posições falsas, que atingem dolorosamente a nossa consciência moral, pondo em risco nossa melhor filosofia, nossa ciência, nossa cultura, nossa capacidade de distinguir entre Bem e Mal.
Portanto, o que se passou e que se transformou no conceito de intolerável não é só o genocídio, mas a sua teorização. Vide o caso do recém-demitido secretário da Cultura. Diante do intolerável, caem as distinções de intenções, boa-fé, erro: há somente a responsabilidade objetiva, portanto, existe o genocídio culposo.
Nazistas que foram a julgamento em Nuremberg tentaram dizer que seguiam ordens, ou que não sabiam de nada. O que Nuremberg fez foi dar a seguinte mensagem: não importa, sinto muito, aqui estamos diante da epifania do intolerável, não valem as velhas leis da humanidade com suas circunstâncias de benevolência atenuantes. Se você fizer algo que é eticamente intolerável, será condenado ao garrote.