O não poder comer carne na Sexta-feira Santa gerou uma das maiores maravilhas culinárias que conheço, a torta capixaba. Por isso, gosto dos limites, impulsionando a vida adiante: se não podemos comer carne – devem ter pensado os antigos -, vamos caprichar na preparação dos frutos do mar. E foi quando se superaram, eu suponho. Na realidade, não sei exatamente como a torta nasceu, mas sei aonde conseguiu chegar. Mais do que um prato típico, é quase uma entidade na cultura capixaba.
Semana Santa sempre foi para nós, capixabas, sinônimo de torta, e isso envolvia uma preparação. O palmito deve ser fresco e o siri e o caranguejo, desfiados à mão; enfim, demandava tempo. Quando éramos crianças, a torta era preparada na casa avarandada de minha avó. Todos os filhos, netos, tios passavam o dia ali, conversando, brincando, os mais velhos bebendo e preparando a torta; depois, cada um levava a sua parte pra casa. Mais tarde, meu pai assumiu a função, e nós ajudávamos cortando os temperos. Eu lembro que tinha sempre uma música tocando, amigos e parentes entrando e saindo, conversando alto, rindo, e ele demorava horas fazendo. Hoje sei que pode ser mais simples, e que aquilo tudo era a razão da festa – estarem juntos era o que importava. Lembro que eu adorava. Faço às vezes isso em minha casa – menos do que gostaria, mas penso em fazer mais, inventar um motivo que promova convívio regado por coisas que alimentem o espírito e o paladar. O tempo passa sempre tão depressa… Começo aprendendo a receita e me sinto na obrigação de ensinar. Mas não se esqueça da música, da família, dos amigos, não se esqueça da festa.
São preparados separadamente: camarão, bacalhau, ostra, siri, caranguejo, sururu (marisco); desfiados, refogados com azeite, cebola, cebolinha, um pouco de coentro, tomate, tudo bem picado, alho, pimenta do reino e sal. Depois, todos são misturados e assados com alguns ovos batidos. Os ovos desaparecem, fica uma textura delicada, um sabor suave, sofisticado, uma delícia. Se for bem feita, você consegue sentir os diversos sabores, puros. A torta é cortada em fatias e pode ser servida com arroz. Espero que tenham um ótimo apetite. (Foto: divulgação).
Viviane Mosé é filósofa, poetisa e psicóloga. Está entre as maiores estudiosas de Nietzsche, com inúmeros livros publicados. É capixaba, mas já se transformou numa carioca imprescindível.