“Ainda hoje, eu falo as mesmas coisas e defendo os mesmos ideais há décadas”. Essa frase está no livro “Vira-lata de raça” (Editora Tordesilhas), lançado esta semana, com texto de Ramon Nunes Mello das memórias de Ney Matogrosso, em primeira pessoa – e resume bem o artista, que se exibe sem maquiagem ou fantasias. O cantor, que também é iluminador, diretor e ator de cinema, de 77 anos – comemorados em agosto – com o conhecido e inacreditável corpinho: músculos em dia, barriga negativa, bunda perfeita, perna em elevado conceito, combinados à rapidez de raciocínio de 20 ou 30 anos (dá no mesmo). A coerência também é outra marca de Ney, que, sem participar de nenhuma campanha, fez muito pelo preconceito, principalmente sobre a sexualidade, só por ser quem é.
O título da publicação foi tirado da letra homônima de Rita Lee, escrita em parceria com o filho mais velho, Beto Lee, e lançada pelo cantor há 20 anos e somente gravada por ele. Mas quem pensa que vai ler uma biografia, pode esquecer – o livro segue uma espécie de linha do tempo de vida e carreira com algumas curiosidades pouco conhecidas pelo público, como a passagem de uma moça com quem se relacionou quando adolescente e apareceu na casa da sua mãe com uma suposta filha, um ano depois de ele sair de casa. Tem também o período em que morou em Brasília, no início dos anos 60, e as descobertas, como a maconha e a primeira relação sexual com um homem. E também tem Secos & Molhados e Cazuza, uma de suas grandes paixões, a única revelada publicamente. Outra vantagem de entrevistas com ele? É absolutamente sincero, verdadeiro, espontâneo, ou seja, fala o que pensa.
Por que você resolveu lançar esse livro?
Não fui eu, fui procurado pela editora Tordesilhas. Nunca tive paciência pra isso, acabou virando um projeto e o Ramon Nunes fez um levantamento; depois disso, apenas três entrevistas comigo. Como eu imaginava, seria uma coisa imensa, mas é um livro mais resumido.
Qual passagem do livro mais o emociona?
Não tenho isso – aquilo faz parte da minha vida; tudo é passado, não me toca mais. Tudo que tinha que passar aqui já passou.
E da época da loucura, o que ficou?
Da época da loucura ficou a loucura. Eu continuo a mesma pessoa pensando e vivendo diferente da maioria, continuo sendo uma pessoa fora do esquadro – de maneira geral, minha visão de vida, minha visão do mundo em todos os sentidos. Acho que o mundo “encaretou” muito, mas não é um fenômeno brasileiro, é do planeta. Só pode deixar prejuízo a quem se submeter a isso, como diminuir o alcance do pensamento. Temos direitos adquiridos, portanto são direitos; não foi oferecido, então a gente não pode abrir mão.
O que você ainda quer fazer na vida?
Quero criar, continuar criando, sei que cantar tem um limite, estou num lucro por cantar aos 77 anos. Sei que, em algum momento, terá impedimento; procuro olhar com naturalidade, como procuro ver a morte com naturalidade. Não tenho medo. Se a única certeza que a gente tem é a morte, seria um medo bobo já que não tem como evitar.
Tem esperança no Brasil?
Sou uma pessoa que tem a esperança por principio, dentro de mim. E nada é definitivo em nenhuma circunstância. Já dizia o Osho: “Tudo passa”, para o bem e para o mal.
O que espera do Jair Bolsonaro?
Sinceramente, espero que ele faça um bom governo, melhorando a vida das pessoas. No começo, o Bolsonaro causava uma impressão; agora causa outra – ele era muito radical. Atualmente, as declarações são mais sensatas, está menos agressivo. Espero que tenha sido um amadurecimento rápido. Espero.
Uma grande tristeza…
Já passei pelas grandes, como aquela mortandade dos amigos, mais ou menos três por semana pela AIDS. Esse grau de tristeza espero que não se repita.
Uma grande alegria…
Estar vivo é uma grande alegria. Eu achava que, em 2000, já estaria longe daqui. Na infância, o ano 2000 era algo tão longínquo que eu achava que não chegaria. Antigamente, a minha referência era de quando as pessoas viviam menos.
Uma grande saudade…
Não sinto saudade, não tenho esse sentimento; já te disse que sou fora do esquadro. Encaro tudo de frente, vivo o que a vida determina e sigo em frente. Não vivo preso em nenhum momento, o que não significa que eu não tenha boas recordações e boas memórias. Não sou apegado a nada. Conscientemente, estou presente em cada momento da vida, consciente do que estou fazendo.
Um grande amor…
Grande amor são vários, disso posso me gabar. Foram pelo menos quatro, mas não cito nomes, não; o Cazuza escapou.
Foto de Rico Studio