Nome de grandeza própria entre os urbanistas do país, Washington Fajardo costuma dizer que “a melhor cidade que existe é a cidade que já existe” e gabarita quando o assunto é revitalização das áreas centrais de cidades como Rio, onde elaborou o programa Reviver Centro, atraindo moradores para a região, quando esteve à frente da Secretaria de Planejamento Urbano da Prefeitura.
Nascido em São Paulo, Fajardo se mudou para o Rio a fim de estudar Arquitetura e Urbanismo na UFRJ, onde se formou em 1996. Desde então, sempre está envolvido com projetos públicos e soluções inteligentes, tecnológicas e sustentáveis. É casado com a arquiteta Patricia Fendt: “Temos juntos três filhos, e ainda sou agraciado com uma enteada; portanto somos seis em casa.” Seus dois filhos adultos estão na universidade no Rio, e os dois menores moram com o casal em Washington, DC, EUA.
Poucas cidades no mundo estão preparadas para mudanças climáticas severas, como a elevação das águas, as secas prolongadas, o clima extremo e as temperaturas mais altas, tempestades que destroem redes elétricas, como em São Paulo, a tragédia no RS, a ansiedade a cada garoa no Rio… Uma cidade preparada é uma cidade planejada.
Fajardo saiu da Prefeitura em 2022: “Graças a Deus, sou cidadão honorário do Rio. Meu corpo nasceu em São Paulo, mas minha alma sempre foi carioca”.
Atualmente tem trabalhado no projeto “Favela 4D”, desenvolvido em parceria com pesquisadores do MIT Senseable City Lab (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), para fazer gêmeos digitais de favelas (tecnologia que promete solucionar problemas de mobilidade urbana usando inteligência artificial), uma forma de criar melhor entendimento sobre os desafios do ambiente construído em favelas cariocas e desenvolver soluções mais efetivas.
Foi presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, Assessor Especial para Urbanismo durante a entrega dos Jogos Olímpicos e esteve à frente do Instituto Pereira Passos. É um Loeb Fellow, programa da Universidade de Harvard que seleciona urbanistas comprometidos com a justiça espacial (espaço/território). No Rio, é autor do projeto arquitetônico da Arena Carioca da Pavuna; da concepção arquitetônica da revitalização do Imperator – Centro Cultural João Nogueira, no Méier; criou o edital Pro-APAC, reconhecido em 2014 com o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade (IPHAN), e criou o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana.
1 – A que você credita esse caos em São Paulo? Poderia ter sido evitado?
As cidades brasileiras precisam urgentemente ter planos de desenvolvimento urbano com componentes de adaptação para as mudanças climáticas, o que implica conseguir lidar com eventos extremos com mais intensidade e maior frequência. Para isso, é necessária também muita integração entre níveis de governo, pois o problema é de escala regional, e também irá envolver o setor privado, ou seja, todo mundo. Não há escapatória ou bode expiatório. Portanto o desafio é de coordenação e priorização, e não deveria estar condicionado inteiramente à existência ou não de uma competência executiva local. Deveria haver um grau mínimo de cobrança do governo Estadual sobre os municípios, do governo Federal sobre os estados. Uma ordem de comando. Tá preparado? Cadê o plano? Tem uma lista de prioridades de investimentos? Tem projetos? Mas nada disso funciona se o bê-á-bá da administração pública não funcionar: planos, projetos, metas, execução e fiscalização. O apagão verdadeiro é gestão pública. Infelizmente vemos muita leniência. Logo, não é a fiação aérea, ou as árvores que tombam: é falta de planejamento.
2 – No Rio, por exemplo, isso poderia acontecer em que lugares?
Todas as cidades estão expostas, mas, pelo menos no Rio, a cultura de preparação já começou há bastante tempo — o Centro de Operações materializa isso. A prefeitura desenvolveu uma cultura de resiliência graças ao trabalho do prefeito Eduardo Paes, e isso virou cultura institucional, o que é ótimo. Problemas vão ocorrer; como você reage ao problema é o cerne da questão. Veja que a cidade tentou embutir a fiação aérea, assim como SP, mas as concessionárias de eletricidade e de telecomunicação conseguiram barrar na Justiça. Logo, há também necessidade de o Judiciário brasileiro compreender o impacto ambiental de algumas decisões que parecem proteger o direito contratual ou econômico de empresas, mas que, na verdade, se convertem em gigantescas bombas ambientais que hoje estouram a todo momento. No final, a conta é pública, e a população (e sempre os mais pobres) tem o maior prejuízo.
3 – Um dos problemas crônicos do Rio são as quedas de árvore durante os temporais e estão a cada dia mais intensas, pelas mudanças climáticas. Muitos acham que a poda é feita de maneira errada, em forma de taça, ou seja, não reduz a altura, só poda pelos lados, o que tira a base.
Bem, esse é um lado em que infelizmente estamos perdendo cultura técnica no manejo da arborização urbana. No detalhe, tudo é difícil e complexo. Assim é plantar árvores: precisa ter viveiro, mudas, equipe, infra, transporte, saber fazer o plantio e acompanhar a evolução. Mudas muito jovens não resistem no espaço público devido à exposição a poluentes. Você precisa ter mudas mais maduras; isso implica irrigar mais e melhor. Precisa ter um inventário arbóreo e monitorar a evolução. Precisa de gente pra fazer isso. A arborização urbana era considerada infraestrutura essencial no início do século XX. Os engenheiros urbanistas da época, como Pereira Passos, sabiam disso, e os projetos eram feitos com árvores, golas de árvore, proteção etc. Já sabiam que a copa das árvores amenizava o clima e protegia a drenagem em dias de chuvas, pois reduzem a velocidade da vazão. Nossa engenharia emburreceu, e tentamos resolver tudo com concreto. Ter canais de drenagem é importante, mas ter árvores também é, e ambos se complementam; só que árvore demora pra crescer. Por isso, em obra pública, todo mundo ama palmeira, que chega alta, pronta e não faz sombra. Não há solução melhor para resfriar, amenizar, suavizar as altas temperaturas do que a arborização no espaço público, e que deveriam ser a prioridade, e não apenas a fiação aérea, que hoje é abundante por causa da explosão de empresas de telecomunicação.
4 – As mudanças climáticas têm trazido as tempestades e o calor extremo. Em 2004, o Pentágono previu o caos em 2050, mas já está acontecendo; ou seja, não foi falta de aviso, foi falta de vontade política local e mundial? Por que faltam tantas ações concretas à altura! Como você imagina o Rio em 2050?
Há uma dimensão geopolítica, pois quem se industrializou primeiro, sujou mais o Planeta e hoje não quer assumir a conta. Mas estamos todos no mesmo planeta embora alguns tentem escapar dele. A sociedade já tem compreensão do problema. O que ocorre é que decisões impactam em estruturas de poder econômico e estruturas muito arraigadas. Novas estruturas precisam ser erguidas. Acredito que ciência e tecnologia vão nos ajudar muito, e que as novas gerações cobrarão mais ainda de suas lideranças. Hoje, precisam renaturalizar tudo: as cidades, os hábitos, o consumo, a vida. Precisamos imaginar uma utopia ecológica e nos mover em direção a ela. O Rio, em 2050, será muito pior se nada for feito de mudança de paradigma. A cidade tem boa cultura para isso, é uma das capitais globais ambientais, simboliza a integração humanidade/natureza, especialmente graças à sua paisagem cultural raríssima. Contudo, nada disso foi obra do acaso: foi pensado, planejado e projetado. O Rio sempre foi expressão de inteligência. Não podemos nos acomodar.
5 – Você conhece muito bem a máquina pública e costuma dizer que “a melhor cidade que existe é a cidade que já existe”. Nas suas andanças pelo mundo, onde viu exemplos que dão certo?
Muitas novidades pelo mundo, por isso digo que não podemos achar que o Rio nos basta. Precisamos manter a mente curiosa e interessada no mundo, como sempre fomos. Desde Medellín e seu urbanismo social, até as cidades-esponja da China, até os centros de inovação digital da Cidade do México, os compromissos de arborização de Atenas, até as soluções de desenho urbano das cidades espanholas. Há muita inovação nas cidades e muita coisa para aprender se mantivermos humildade e atitude de estudante.
6 – Você “brinca” muito com a IA construindo paisagens para cenários conhecidos, com muita área verde. Quanto nós estamos atrasados em projetos sustentáveis?
Sim, infelizmente. Observe como o Rio é uma rara capital brasileira comprometida com novos parques urbanos, por causa da correta obsessão do prefeito Eduardo Paes. Mas precisamos fortalecer a nossa cultura de design urbano, que sempre tivemos. Precisamos trazer mais componentes ecológicos para a gestão do espaço público, além de plantar mais árvores, fazer muitas e boas calçadas com pavimentos absorventes. Investimos mais em asfalto no Brasil do que em calçadas para caminhar, para crianças e idosos. Com o envelhecimento da população, calçada é infra de primeira necessidade e pode ser fatal se for mal feita ou mal protegida de ocupações indevidas.
7 – Os moradores da Gávea, por exemplo, estão loucos com um novo empreendimento que pode atingir um pedaço da Mata Atlântica para construção de 18 casas num condomínio, com a promessa de compensação, ou seja, o replantio; neste caso, dentro do próprio terreno. Assim como o Alto Gávea, são vários pontos no Rio que são desmatados.
Por isso sou enfático no tema da arborização pública. Árvores em terrenos privados estão sempre sujeitas ao corte. Não podemos achar que um terreno privado tenha a responsabilidade de refrescar um apartamento em um prédio que cortou também as suas árvores no passado. Não podemos confundir as coisas. Não podemos tentar impedir a transformação pelo fato de alguém ter chegado primeiro em algum lugar. O que precisamos é que exista uma política efetiva de plantios, bem feita, usando bem os recursos da compensação ambiental.
8 – O que aprendeu sobre a cidade carioca no período em que trabalhou aqui?
O Rio é aula de bom urbanismo a cada segundo. Como capital, tudo era feito com muita reflexão e esmero. E muito foi feito! O fato de ter havido pensamento e design nunca impediu o Rio de se transformar. Tudo da beleza do Rio é inventado, projetado e construído com muita atenção aos detalhes e à durabilidade. Lista enorme: do Jardim Botânico ao Parque do Flamengo, do bondinho ao Cristo, da duplicação da Av. Atlântica ao Centro do Rio. O Rio ensinou ao Brasil o que era bom urbanismo.
9 – Quais os projetos que você já implantou que mais te tocam o coração? Por quê?
Reviver Centro, porque o Centro do Rio é uma paixão. Assim, também, a transformação do Imperator, a Arena da Pavuna e a Praça do Trem, no Engenho de Dentro, porque eu vim do subúrbio e da Zona Norte.
Foto: Leo Aversa