Faz pouco mais de cinco anos que entrei na casa dos 60.
Não que eu quisesse: foi impossível evitar. A porta estava aberta, e eu tinha sido despejado da casa dos 50, onde vivia em relativo conforto há uma década.
É a lei do inquilinato da vida: quando nos acostumamos a uma casa, ao seu tamanho, à disposição dos cômodos e do mobiliário, à vista, ao valor e aos vizinhos, chega o caminhão da mudança.
É um caminhão cada vez menor para tanta tralha. E, por mais que a data esteja reservada com grande antecedência, tudo tem de ser feito às pressas, como se um dia a mais ou a menos na casa anterior tirasse o mundo de sua órbita e a galáxia de seu eixo.
A contragosto me mudara para a casa dos 50. A localização – no começo de uma descida íngreme – não era das melhores. Já não havia quintal na casa dos 40, mas na dos 50 faltava também o jardim em frente. No lugar da varanda, uma sacada. Batia menos sol, o quarto cheirava a mofo.
Em dez anos, fiz dela um lar – ou, pelo menos, tornei-a habitável. Troquei as dálias por plantas que demandavam menos luz, investi na impermeabilização das calhas (na casa dos 50 é que começam as infiltrações), raspei o sinteco e vi como é mais bonita a madeira ao natural, com seus veios e contrastes.
Ainda na casa dos 40 tinha desistido de tudo o que desse trabalho para manter limpo ou que se quebrasse com facilidade. Me livrei das persianas, dos enfeites na estante, das relações que envolvessem dependência emocional, dos relógios de corda, do carpete. Mesmo assim, a casa dos 50 me encontrou carregado de livros que jamais lerei e dos que certamente não vou abrir de novo. De cartas não lidas (em que caixa estarão?), de números de telefone por apagar da agenda e da memória, de velhas roupas coloridas que não me servem mais.
Se a casa dos 20 era espaçosa e vulnerável – com vidraças, claraboias, muros baixos e vizinhança suspeita –, a dos 30 tinha a minha medida: parecia sólida, bem-acabada, com o charme de uma bay window (eu acreditava que a felicidade fosse uma casa sólida, bem-acabada e com bay window) e árvores no quintal. Surgiram trincas (que a massa corrida conseguiu disfarçar por algum tempo), os acabamentos saíram de moda (em dez anos, o que não sai de moda?) e a bay window…. bem, nunca cheguei a me sentar ali, com um livro na mão e um amor (ou um cachorro, o que dá na mesma) do lado, como constava do contrato de locação. Tampouco aproveitei as delícias – a rede, a sombra, as frutas – do quintal
Veio a casa dos 40, não mais no meio da quadra, mas dobrando a esquina. A sala dava para a avenida, mas os quartos (ainda eram dois), a cozinha e o banheiro se abriam (com janelas estranhamente menores) para a rua lateral. Dali se podia ver, ao longe, a casa dos 50, mas preferi ignorá-la – por algum tipo de pensamento mágico, imaginei que, se fosse um bom inquilino, me deixariam ficar nesse endereço para sempre.
Um dia, parou na porta o caminhão de mudança, e a casa dos 50 – sem jardim, sem quintal, sem varanda nem dependências de empregada – acomodou o que coube. Muita coisa ainda estava encaixotada quando outro caminhão, menor ainda, veio transportar lembranças (cada vez mais vagas), um sofá, retratos, remédios, a coleção de selos (que vinha de casa em casa desde antes de haver a casa dos 20) e desci a pé a rua para entrar na estranha casa dos 60.
Estranha porque insuspeitadamente confortável para uma morada de quarto e sala – “conceito aberto”, como chamam agora essa economia de paredes que faz o cheiro do café impregnar o porta-retratos e inviabiliza fingir não ver o acúmulo de louça na pia.
As janelas são estreitas, o que dispensa cortinas. Não há guarda-roupas ou maleiros – um cabideiro sustenta o essencial. Lâmpadas de LED poupam energia – não há mais tanta energia assim para desperdiçar. Tudo é mais leve, mais prático, com menos quinas para ferir, nenhum degrau onde tropeçar.
Há outras casas, mais abaixo (meu pai morou na casa dos 80, minha mãe na dos 90). Imagino se terão lugar para um ou dois cachorros, espaço para uma estante e – quem sabe – uma bay window (ainda acredito em bay windows).
Se chegar a morar em alguma delas, espero saber aproveitar.