Uma vez, o talentoso cineasta Guilherme Coelho classificou de libelo a peça “Ninguém sabe meu nome”. O libelo, sobretudo centrado em monólogos, ganha na cena teatral, podemos dizer, status de gênero. Libelo em juridiquês é a exposição breve e articulada do que se pretende provar contra um réu. No entanto, já houve, em plena Revolução Francesa, o teatro-libelo, chamado “libelles”, com um papel essencial enquanto obras com características de dimensão histórica, pois traziam ao público narrativas sobre a história recente da França naquele período.
Entre as mais diversas libelles que inundam nossos palcos, “Eu sou um Hamlet”, com Rodrigo França e direção de Fernando Philbert, consegue ir além de ser uma peça acusatória — o espetáculo é um movimento de altíssima sofisticação que já parte da ideia de se fazer um mosaico de vários textos de Hamlet para compor um grito de profunda dor ao apontar a situação do jovem preto, vítima de um verdadeiro genocídio.
O cenário começa com uma destruição aparente, ordenamento desordenado, mas é o figurino de Rodrigo o elemento cênico surpreendente e avassalador: branco, com um crochê de cordas, um caftan, uma batina, algo que nos remete, de imediato, ao nível do sagrado. Rodrigo se transforma em um profeta, um vate. O jovem herdeiro vingador muda de pele, incorporando o abandono da negritude no gestual, na voz, mas no corpo, não. É um órfão-símbolo com a incapacidade de superar o inimigo.
A direção de Fernando Philbert não é uma atualização propriamente dita. O texto é o clássico, como vimos no estupendo Hamlet de Gabriel Villela, mas, na versão de Philbert e Rodrigo, há o ganho de um aparente subdiscurso: a escolha potente das músicas, da trilha sonora que costura o sentido e joga Hamlet nas favelas do Rio, em 2024. Assume o proscênio, dá sentido, força brasileira. Philbert com Rodrigo transformam em pura emoção o esforço de denunciar e de apontar, ainda que não seja réu determinado, quem é que permite o racismo, ainda em 2024, como forma brutal de matar.
Fotos: Marcio Farias
Serviço:
Teatro Firjan Sesi Centro
Quinta e sexta-feira, às 19h
Sábado e domingo, às 18h