Se vivo estivesse, Machado de Assis (1839-1908), talvez, fosse um grande influenciador digital, o que, na vida analógica, ele nunca deixou de ser. O escritor, fundador da Academia Brasileira de Letras há 127 anos, está mais do que em alta, desde que, no fim de maio, a americana Courtney Henning Novak viralizou ao fazer uma postagem bem-humorada sobre uma resenha de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1880), traduzido para o inglês de Flora Thomson-Devaux: “Preciso ter uma conversinha com o pessoal no Brasil”, disse ela sobre o clássico da nossa literatura, que estava lendo como parte de um desafio do “BookTok”, expressão usada por influenciadores que indicam livros através do TikTok, no mundo inteiro, ajudando a aumentar as vendas e contribuindo para os grupos editoriais — na rede em que ela deve ler um livro de cada país em ordem alfabética. “A minha edição só tem 300 páginas. Só faltam 100 páginas e, se eu for muito cuidadosa, elas vão durar até o fim de semana. E aí o quê? O que eu deveria fazer com o resto da minha vida? Por que vocês não me avisaram que esse é o melhor livro já escrito?”
Depois do post, o livro ficou em segundo na lista de mais vendidos da Amazon EUA, superando a tradução das obras de Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges na categoria literatura latino-americana e caribenha.
Agora, Courtney anunciou que está lendo mais um livro de Machado: “Dom Casmurro” (1899), em uma publicação nessa quinta (06/06). “Vou trapacear na minha missão de ler livros de todos os lugares do mundo, para fazer uma dobradinha brasileira. A pressão dos brasileiros é incrível”, escreveu ela.
Machado está nos corações, nas escolas, no jardim do Petit Trianon carioca, em forma de escultura de bronze, num “avatar humanizado”, que funciona com o uso de inteligência artificial (IA), em que interage em tempo real com os visitantes da ABL, respondendo a questões sobre sua vida e carreira. Estão na ABL objetos pessoais do Bruxo do Cosme Velho, como o pincenê (óculos sem haste), a escrivaninha, o tabuleiro de xadrez e o famoso fogareiro onde, reza a tradição, ele incinerava os manuscritos de que não gostava.
E existe alguém que conhece Machado de Assis profundamente: Silviano Santiago, escritor vencedor de três prêmios Jabuti (1982, 1993 e 2017), um Machado de Assis (2013), um Oceanos (2015) e o Camões, em 2022.
No romance “Machado” (2016), Silviano recria as últimas e dolorosas passagens da vida do escritor, no começo do século XX, quando, viúvo e solitário, começou a sofrer fortes dores e crises nervosas enquanto via a modernização do Rio. O mineiro Silviano é autor reconhecido desde 1954, quando começou a escrever para uma revista de cinema, ainda em BH, bem antes de se mudar para o Rio e de rodar o mundo. É doutor pela Sorbonne, ex-professor universitário na Europa, nos Estados Unidos e em universidades brasileiras, como a PUC-RJ. Silviano é ensaísta, poeta, contista, romancista, professor e crítico literário “com talento saindo pelas orelhas”, como disse uma jornalista durante a entrega do Camões, no fim do ano passado, na Biblioteca Nacional.
1 – Sendo profundo conhecedor da obra de Machado de Assis, qual sua opinião de Machado ter viralizado no Tik Tok? O que você sentiu ao ler Machado pela primeira vez?
Machado é paixão à primeira vista — paixão definitiva. Faltava desenvolver o amor por sua vasta e complexa obra, cuidar e aprimorar os sentimentos, as emoções e o saber do leitor. A paixão é arrasa-quarteirão, mas a convivência amorosa advém da rotina e das misérias, ansiedades e riquezas do dia a dia. O leitor ingênuo e apaixonado se transformou no crítico exigente e amoroso, que se perde nas entrelinhas dos livros e dá à luz o biógrafo impertinente, que se interessa pela vida vivida do autor.
2 – Engraçado que um vídeo num app para a geração Z já tem milhões de visualizações e despertou o interesse de leitura desses jovens, o que impulsionou a venda do livro em outros países. Acredita que Machado é atemporal mais do que outros conhecidos autores do século XIX? Por quê?
Machado é um inventor, e a história da literatura planetária (não gosto do adjetivo universal, o conceito é eurocêntrico) é escrita pelo trabalho dos seus inventores. (Em outras palavras: não é pelo trabalho dos seus divulgadores.) Difícil um inventor ser descoberto no seu próprio tempo e no seu próprio país. Para ficar com a literatura brasileira, até hoje, ainda não “descobrimos” o poeta Sousândrade. O inventor é quem faz algo que os outros vão reproduzindo depois, sem lhe dar crédito. Quem se lembra de Graham Bell quando usa o celular? O inventor acaba por estar anônimo e forte nas obras alheias que lhe sucedem. Machado está prontinho para virar Kafka. Está por toda parte – e ainda tem os seus detratores no Brasil.
3 – No seu ponto de vista, é raro encontrar jovens interessados por leitura em geral? Até pela rapidez das informações e de tudo ser muito rápido, sem tempo de absorção?
Deixemos os jovens sem complexo de culpa; não é por aí que se pensa a pós-modernidade. A aparente falta de interesse é consequência da transformação por que passa a própria feitura do livro literário e da sua leitura. Feitura e leitura se transformam ao mesmo tempo em que as sociedades se querem menos autoritárias e menos inteiriças, mais tecnológicas e mais democráticas. Machado, o Bruxo, sai ganhando com o dito “progresso” da humanidade. Seus livros eram menos bem compreendidos à época em que tínhamos uma noção imperiosa de tempo cronológico e evolutivo. Desde o movimento cubista, para dar apenas um exemplo, a apreensão de objeto, a sua leitura, se faz pela fragmentação, evidente fator de dispersão. O capítulo curto de Machado, aparentemente descosido, mas sempre bem-humorado, coincide com a leitura em pílulas de vida, cuja absorção é diferente da leitura infindável de um tijolão.
4- Você é autor de “Machado” (Companhia das Letras), considerado um dos melhores livros dos últimos tempos, chamado de audacioso. Quais as principais audácias ali? Como você analisaria esse livro, onde você retrata o fim da vida de Machado e sua solidão?
Já que pergunta, saliento três ousadias. Primeira: abordar a parte menos conhecida da vida e obra de Machado. Tinha em vista um retrato do artista quando velho (estamos acostumados aos retratos do artista quando jovem, o famoso “romance de formação”, iluminista). Segunda: perceber que, nesse período, a epilepsia se torna mais aguda, obrigando-o a consultar o Dr. Miguel Couto, que tinha cuidado de Carolina, sua mulher. Terceira: assinalar que existe uma relação estreita entre a inevitável “ausência” (é assim que Machado nomeia a crise epiléptica) e a experiência sucessiva da “pequena morte”, experiência complexa que compõe não só a vida do enfermo como também a dos capítulos um tanto desnorteados e desnorteantes e também, mais importante, a própria criação de um narrador-defunto. Gustave Flaubert, também enfermo, me chamou a atenção para o fato. Em perfeito compasso com Machado, ele escreveu: “Eu morri muitas vezes”. Machado, de novo, é moderníssimo: seu corpo é quem escreve a ficção. Com permissão do amigo Eduardo Vidal, mestre em Lacan: a ficção de Machado é um dizer do corpo.
5- O que você aprendeu, assimilou, se sensibilizou durante a pesquisa para o livro? O que há de mais apaixonante?
Sou uma pessoa que facilmente se apaixona pelo que desconhece. Quando entro numa pesquisa, entro sem guarda. Aprendi horrores sobre a capital federal na passagem do século XIX para o XX. Pensava que Petrópolis era o “quente”; o “quente” é o Alto da Tijuca. Recuperei a Bíblia para entender melhor um pseudônimo de Machado, Manassés, o irmão doente e preterido de Efraim, e o título do romance “Esaú e Jacó”. Machado adora hospedar a si e aos seus personagens em outros livros. Não era o que eu fazia? Hospedava-me em Machado? Sabia alguma coisa dos velhos dicionários de medicina. Lembrava ter fuxicado em alguns quando criança (pertenciam ao meu pai). Entrei com a cara e a coragem no dicionário alopata (o de Chernoviz) e no homeopata (o de Cochrane, aliás, sogro de José de Alencar). Em suma, senti o prazer da erudição totalmente gratuita, indispensável a quem deseja ser romancista. O paradoxal é que, contraditoriamente, saí da experiência gratuita conhecendo melhor a literatura.
6 – Pulando para 2024, por exemplo, de quem o Machado seria amigo?
Seria amigo e admirador de todos esses artistas que não têm medo de Virginia Woolf (rs). Ou seja, de todos os escritores que, quando estão com a mão nos próprios sentimentos e emoções, adoram desviar os olhos da escrivaninha e se hospedar nos livros dispostos na sua biblioteca. O desvio dos olhos indica que o artista quer sustentar o trabalho numa tradição, a fim de despertar o seu próprio leitor para o infindável mundo que se descortina para quem tem o hábito da leitura pelo prazer da leitura. O argentino Borges escrevia “na” biblioteca de Babel; o nosso Machado escrevia “na” sua biblioteca de Pandora. Como disse o poeta Paul Valéry: “Nada mais original, nada mais intrínseco a si que se alimentar dos outros. É preciso, porém, digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado”. Pandora diz: “O raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro, tanto melhor: eis o estatuto universal”.
7 – Além dos títulos já conhecidos, quais os livros que você indicaria para essa nova geração de leitores de Machado? Por quê?
Indicaria um conto delicioso e que demonstra que Machado, à semelhança de Marcel Proust, adorava fazer pastiche. O conto se chama “O segredo do bonzo” e tem por subtítulo “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. Ele ousa escrever um conto fazendo um “pastiche” (ele usa a palavra) de um dos maiores prosadores portugueses europeu da época de Camões, o Fernão Mendes Pinto. Ele é o autor de um dos clássicos sobre a colonização dos orientais pelos portugueses, intitulado “Peregrinação”. Machado não fala dos desastres do genocídio indígena aqui; fala de genocídio semelhante na Ásia. Põe o dedo na dupla ferida. Esse “capítulo inédito” escrito por Machado, se inserido – como ele recomenda – no livro clássico lusitano, nos propõe uma leitura fascinante da catequese jesuíta — a Fé sustentada pelo Império, ou vice-versa. Mas, antes de ler o conto, leiam o capítulo “A ponta do nariz”, nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Nem Sócrates nem Platão: quem conta mesmo é o faquir, deitado na sua cama de pregos. Mais não digo porque não precisa.
8 – Cite algumas curiosidades sobre Machado (como a quantidade de palavras “viúva” que você contou em “Ressurreição”) e o que mais o prende e encanta em Machado?
A literatura de Machado tem a ver com o adultério, mas tem pouco a ver. A confusão é gerada porque os leitores (em particular os masculinos) acreditam piamente nas palavras do marido, Bento Santiago, narrador do romance Dom Casmurro. Aliás, sendo ele advogado de formação, conhece todos os truques de promotor público; já Capitu não tem advogado de defesa em todo o livro. O romance tem mais a ver com o ciúme doentio, masculino. É ele o produto legítimo da mente do macho patriarca que confia na mulher, desconfiando sempre. A viúva não deixa de ser o personagem feminino que cai à perfeição no esquema do ciumento masculino. Tendo ela amado um homem, adotado o casamento monogâmico e jurado fidelidade eterna, o que acontece quando ela perde o marido e quer se casar de novo? Na condição de viúva, ela é, a priori, quem ingenuamente atiça o ciúme no pretendente. Leia-se “Ressurreição”, primeiro romance de Machado (1872), antes de reler “Dom Casmurro” (1900). Compare-se Lívia, a viúva do primeiro romance, e Capitu, a adúltera, sem provas evidentes da traição. Machado não é imitador de Flaubert nem de Eça de Queirós — é um inventor, repito. Dá uma estocada no patriarcalismo.
9 – Você nasceu em Minas, viveu na França e nos EUA, mas vive no Rio, há 50 anos. Quais as principais razões para escolher a cidade carioca? Por quê?
Por ser uma cidade solar. Vivi muito na neve e buscava uma cidade onde o Sol era soberano. Mas, como não tem jeito de eu fugir às ironias do destino, cá estou às voltas com um procedimento cirúrgico no nariz. Culpa da inclemência do sol.