É muito raro encontrar, no mesmo espetáculo, o que compõe todos os elementos corretos de um gênero. Alguma coisa podre é um musical que vai na contramão da febre que vivemos. Para começar, tem dança: muito boa, bem executada, sapateados, movimentos corporais, a base; figurinos de qualidade na criação e na confecção. A acertada direção de Gustavo Barchilon, que consegue equilibrar o conjunto de todos os que estão em cena.
O acerto do texto, tendo como fio condutor uma disputa de autoria entre os irmãos Rego Soutto e Shakeaspare, é dos americanos Karey Kirkpatrick e John O’Farrell, com músicas de Karey e Wayne Korkpatrick. No entanto, a estupenda interpretação que vemos em cena, dos atores principais e coadjuvantes, é a demonstração da riqueza brasileira em ter artistas ecléticos, talentosos, capazes de cantar (sem os gritos The voice), dançar, falar sem que se perca uma sílaba sequer, de nos fazer rir, torce com entusiasmo e aplaudir, aplaudir.
Marcos Veras completa o palco no papel principal, Nick, o dramaturgo frustrado que não consegue superar seu inimigo Shakespearem mas aposta em fazer algo novo e que comove a plateia. Essa dubiedade, cantada e dançada, acaba por ser um momento memorável na nossa cena teatral. Leo Bahia, o ator que teve uma interpretação superior ao elenco original do The Book of Mormon, repete a competência em Nigel, o irmão poeta e apaixonado.
No conflito da criação, o Tertius é o sobrinho de Nostradamus, um vidente que prevê o futuro do teatro ser o musical. Wendell Bendelack é o mago que, descabelado, consegue trazer veracidade ao inverossímil, com seu desempenho no triângulo dançar/cantar/atuar. E completando o quarteto, George Sauma como o “frágil” Shakespeare, que nos apresenta o poeta por um outro viés.
Os temas paralelos, como a necessidade de a mulher ficar em pé de igualdade com os homens, a intolerância religiosa, a voracidade do capitalismo, estão lá, no equilíbrio de seus intérpretes: Rodrigo Miallaret como Irmão Jeremias; Bel Lima como Portia, sua filha; Laila Garin é Bea, a feminista mulher de Nick; Diego Montez, Lorde Clapam, o produtor; e Tony Germano, o Shylock que dá origem ao Mercador de Veneza. Ou seja, um conjunto afinado que transforma alguma coisa podre em um vento de frescor e prazer no atual teatro.
SERVIÇO:
Teatro Casa Grande, Leblon
quintas e sextas às 20h30; sábados, às 19h30; domingos, às 17h30