O Brasil teve 67 anos de Monarquia (entre 1822, ano da Independência, até 1889, na Proclamação da República), mesmo assim, seu povo é fascinado, não só pela mais antiga forma de governo do mundo, como também pelas famílias que levam os sobrenomes de seus ascendentes “sangue azul”.
A mais famosa é a Família Real Britânica e toda a aura de magia – atualmente são 10 países com Monarquia, todos na Europa. O mundo mudou, as formas de governo também, mas os Windsor seguem com índices de popularidade praticamente imutáveis – a exemplo da eterna e pop rainha Elizabeth II (1926-2022), a mais longeva no cargo e a “rainha dos memes”.
No entanto, a centenária Casa de Windsor, embora seja a mais conhecida, é também a mais fechada e, até por isso, resiste ao tempo enquanto outras dinastias caíram, por manter suas tradições e controle da árvore genealógica. Para se ter uma noção, hoje, só 19% dos britânicos, segundo pesquisas, acham que o Reino Unido deveria se livrar da Coroa.
O escritor e jornalista Stephen Bates, que cobre a monarquia para o inglês “The Guardian”, comparou essa fixação a uma novela – com enredo bom ou não, elas mobilizam milhões de telespectadores, tanto que a realidade virou ficção (com muita realidade) em séries como “The Crown”, na Netflix, que cada capítulo da última temporada custou US$ 125 milhões (ou R$ 500 milhões); e também a documental “The Royal House of Windsor”, na Prime Video.
A rotina da família sempre foi orgulho — e fetiche – para os ingleses (e o mundo). O casamento de Charles e Diana, em 1981, foi visto ao vivo pela TV por mais de 750 milhões de pessoas em 74 países; o enterro de Lady Di, em 1999, foi acompanhado por quase um milhão de pessoas depois de uma semana de luto; o casamento do príncipe William (Guilherme de Gales) e Kate (Catherine Middleton) foi assistido por 2,5 bilhões de pessoas em todo o Planeta.
Recentemente, dois anúncios abalaram o castelo: o câncer de Charles, 75 anos, recém-coroado rei, seguido do sumiço de Kate Middleton, 42 anos, foto manipulada para tentar disfarçar e, depois de muitas especulações, o anúncio da doença em um vídeo franco. “Para todos que estão enfrentando essa doença, de qualquer forma, por favor não percam a fé ou a esperança. Vocês não estão sozinhos”, disse ela. A comoção foi planetária.
Para entender esse fascínio, falamos com o destacado Francisco Vieira, mestre e doutor em História (pela UFRJ e UFF), além de pesquisador e consultor, por exemplo, da novela de época “Novo Mundo” (2017), da TV Globo, de onde foi pesquisador por alguns anos. Também é frequentemente convidado a falar na GloboNews sobre fatos históricos, acontecimentos de época e casamentos reais. Tem o prestígio super em pé nos grupos para os quais dá aulas, em sua maioria, intelectuais e, ainda, cursos na livraria Argumento. Seu lema costuma ser a frase “não saber História é estar condenado a repetir erros”.
Por que ainda existe uma fixação do mundo inteiro, incluindo o Brasil, especificamente pela realeza inglesa?
Acredito que seja por causa da importância do Império Britânico a partir do século XIX. O imperialismo e o colonialismo britânico colocaram a realeza daquele país em primeiro plano, lugar ocupado pela Monarquia francesa durante o Absolutismo. Mas sem esquecer o advento da imprensa e da burguesia.
Por aqui, qualquer notícia quanto aos descendentes da realeza brasileira é encarada como, digamos, uma brincadeira, enquanto outros defendem a Monarquia. Como vê os dois movimentos?
Acho que a Monarquia no Brasil tem raízes muito pequenas. Foi um episódio na nossa História, supervalorizado por uma historiografia que queria estar em consonância com uma cultura europeia, e o fato de termos uma família real “prima” das casas reais do velho mundo legitimava esse sentimento. Hoje estamos em contato com uma História que cuida da maioria, não de uma elite econômica, escravocrata e europeizante. Temos que olhar para nossas raízes africanas, ancoradas em muita luta e sofrimento.
Tiveram outros casos de doença escondidos nas famílias reais em circunstâncias parecidas?
Famílias reais se compõem de seres humanos como os outros, portanto houve sem dúvida muitos casos de doenças ao longo da história. O problema é quando as famílias dos reis passam a ser notícia em jornal, passa a ser de interesse do grande público. Podemos lembrar a hemofilia entre os descendentes da rainha Victoria, incluindo o czarevitch Alexo, filho de Nicolau II. A doença dele foi escondida até de membros da família imperial russa. E surge Rasputin, que muitos não sabiam o porquê da presença daquele curandeiro na corte. Ou o irmão dos reis Eduardo VIII e Jorge VI, o príncipe John, sempre mantido distante da imprensa.
Existem muitas diferenças entre as famílias reais?
Existem diferenças de política e economia entre os dez países monarquistas atualmente na Europa, e isso define a imagem das suas famílias reinantes. As monarquias nórdicas são bem mais populares e procuram se adaptar, cortando privilégios e mesmo funções de membros que não são filhos dos soberanos. A rainha da Dinamarca, por exemplo, tirou mesmo o título de príncipe de seus netos, filhos de um filho mais moço. Já uma monarquia como Mônaco, onde o príncipe reinante de fato tem poder, mas controla a economia do país, pouco importa com as quebras de normas e tradições. Aliás a tradição em Mônaco sempre foi o não conformismo e a quebra das regras. Liechtenstein teve a primeira afro-descendente a entrar na realeza européia. Foi notícia? Ninguém fez alarde.
Assim como o mundo, a realeza teve que se adaptar aos novos tempos, com criação de redes sociais, se aproximando mais dos ingleses e fãs. Hoje sabemos que é difícil esconder algo como figuras públicas. A partir de quando a família real passou a se importar com a imprensa?
Vejo essa superexposição a partir da década de 1950 para 60. O casamento de Rainier III com uma estrela de cinema, Grace Kelly, foi supernoticiado. Eram dois mundos de fantasia que se misturavam. Na Inglaterra, o marco foi um programa de televisão mostrando a intimidade dos Montbatten-Windsor. Era preciso humanizar a monarquia. E não teve volta. A princesa Diana e seu enterro espetacular foram outro marco fundamental. Era preciso se adequar e entender que, agora, eram personagens consumidos pelo grande público.
Como você acha que o anúncio da doença de Kate caiu para os seus fãs, sendo ela o conto de fadas perfeito?
Ela era perfeita para o papel de futura rainha. Precisava usar vestidos de loja de departamento: mostrar que a inglesa comum poderia se identificar com ela. A exposição de uma doença que atinge milhões foi mais uma vez uma forma de mostrar a humanidade dessa princesa de contos de fada.
Por que todos os escândalos aparecem, por exemplo, na família de Mônaco, e não na inglesa?
Entendo que a família dos príncipes de Mônaco “sustentam” os monegascos. Não se preocupam e nunca se preocuparam em seguir normas ou protocolos. O príncipe de fato reina e governa. Não precisam. Não dependem da opinião pública. Muito diferente da realeza inglesa, que reina mas não governa, depende da política, dos votos, de quem paga impostos para sustentá-los. Da opinião pública.
Depois que Charles e Kate anunciaram o câncer, quem fica do lado das figuras reais mais visíveis do Reino Unido é a rainha Camilla? (Ela foi para a Ilha de Man para fazer um discurso em nome de Charles e se reuniu com funcionários públicos e grupos comunitários; e também participou de um evento literário e recebeu saudações em um desfile militar).
Sim, a rainha Camilla, o príncipe William, os irmãos do rei, Anne e o duque de Edimburgo. Com o afastamento de Harry e do duque de York, é com aqueles membros da família que o governo conta para representar a realeza.
Pela sua experiência como professor, como será o futuro das famílias reais, principalmente da inglesa?
Não dá pra saber. Estamos no século XXI e ainda ocupados com reis e príncipes. Quem diria? Reza a lenda que só sobrarão cinco: os do baralho e o da Inglaterra. Será?