Muito se engana quem julga que os bairros tradicionais do Rio de Janeiro se limitem ao Cosme Velho de Machado de Assis, à Santa Teresa de José de Alencar, ao Encantado de Cruz e Souza, ao São Cristóvão da família imperial ou à Paquetá de “A moreninha”.
O Rio de personalidade marcante vai além da Ipanema de Millôr e Rubem Braga, da Glória de Pedro Nava, da Aldeia Campista de Nelson Rodrigues, da Vila de Noel.
Também há tradições arraigadas depois do primeiro túnel, do segundo túnel e do terceiro túnel — na Barra da Tijuca.
Uma das características indissociáveis do bairro é a solidariedade.
A Barra é solidária aos portadores de deficiência auditiva: fala-se em volume bem acima do necessário para os ouvidos comuns, mas calibrado para contemplar os que padecem de perda de audição.
O barrense (outrora conhecido como “emergente”) é, antes de tudo, um altruísta. Incapaz de ouvir música sozinho, abomina o fone de ouvido e compartilha seu gosto musical (e suas preferências nos reels) com todos à sua volta. Na praia, na ciclovia, na academia, na piscina, o som do seu celular busca alcançar o máximo de pessoas à sua volta, numa atitude de democrático desprendimento.
A Barra é sociável.
O bairro é famoso pelo caráter comunicativo de sua gente. Nos cinemas, as conversas são tão animadas quanto aquelas que, em outras partes da cidade (quiçá do mundo), só acontecem nos bares e nos estádios de futebol.
A Barra é o lar de gente feliz, que gargalha nos teatros, qualquer que seja o enredo da peça. O drama, aqui, não se cria.
Catetinos, gaveanos, grajauenses podem ter lá suas virtudes, mas só o emergente quer tanto a companhia dos vizinhos que insiste em entrar no elevador antes que estes saiam. Assim, todos desfrutam — nem que seja por breves momentos – dessa convivência tão aprazível.
Copacabanenses, lebloninos e urquianos guardam segredos, reprimem afetos — e, talvez por isso, lotem os divãs de psicanalistas. Não conhecem a terapia de ir para a varanda, de celular em punho, e espalhar aos sete ventos as suas fantasias mais íntimas, seus entreveros familiares, suas vicissitudes. Sem tempo lógico, sem hora para acabar.
A Barra é disruptiva.
Tijucanos, lemenses e conradianos ainda devem seguir padrões impostos por uma sociedade arcaica e retrógrada, que cultiva privilégios. Barrenses, não! Isso de “quem chegou primeiro se serve primeiro no self service” já foi há muito abolido por aqui. Por que colocar a comida no prato na mesma ordem em que ela está disposta no bufê? Um vai direto o bife, volta para a batata, avança para o macarrão, retrocede para a salada — enquanto o que já estava na fila (fila?), escolhendo alface, ultrapassa pela direita em busca do estrogonofe de frango, recua para colocar azeite e parte em direção ao filé de tilápia (que, a esta altura, é disputado por quem acabou de chegar e que só no fim regressará ao ponto de partida para resgatar o quindim da sobremesa).
A Barra é compassiva.
A solidão pode invadir a alma de um lagoano, de um insulano, de um humaitaense. A tradição da Barra não permite que isso aconteça: ninguém há de se sentir só com os móveis sendo arrastados no andar de cima, alta madrugada. Com a furadeira rompendo o isolamento já ao romper do dia. Com a contagiante alegria das festas infantis vindo resgatar — com microfone, animadores e funks proibidões — as melhores lembranças, ininterruptamente, das 9h da manhã até o cair da tarde de domingo.
Enquanto sancristovenses, ipanemenses e banguínos (banguínos?) deixam sua herança se perder, sua história se esfumar e seu legado perecer, a Barra se agarra às suas tradições e as mantém vivas, vibrantes, enraizadas.
A Barra não tem esse nome à toa.