Para quem nasceu depois dos anos 80, Ângela Diniz pode ser um nome qualquer, mas, para muitos que viveram intensamente os anos 70, a ansiedade está em alta por “Ângela”, cinebiografia com Ísis Valverde e Gabriel Braga Nunes. O filme é sobre o assassinato da mulher conhecida como “Pantera de Minas”, aos 32 anos, em 1976, em Búzios, cometido pelo então namorado, o playboy Raul Fernando do Amaral Street (1934-2020), o Doca Street. A estreia nos telões seria nessa quinta (31/08), mas a distribuidora Downtown Filmes adiou para 7 de setembro.
A produção nacional, dirigida por Hugo Prata, aposta no “true crime”, um gênero que nunca saiu de moda nos EUA e cresce por aqui. O trailer, de apenas 2 minutos, deixa o espectador eletrizado. A história ficou mais conhecida do público jovem com um dos podcasts mais comentados de 2020, “Praia dos Ossos”, que fez uma investigação minuciosa sobre o assassinato de Ângela, morta com quatro tiros no rosto, quando Búzios ainda era só mato e destino das loucuras da juventude carioca.
Em comum, tanto na produção do podcast quanto no filme, vários personagens da época foram entrevistados. Uma delas conviveu com a história bem de perto — Kiki Garavaglia, a “locomotiva” carioca, apelido dado pelo colunista Ibrahim Sued (1924-1995), que conviveu pouco menos de um ano com Ângela, mas intensamente (ele é personagem do longa).
Kiki ainda não foi à pré-estreia, que tem rodado o Brasil. Nesse sábado (02/09), foi em Curitiba, com bate-papo com o diretor. Ela aprovou a protagonista, com louvor: “Fiquei impressionada”.
O caso foi uma forte motivação para os movimentos feministas na década de 1970/1980, em combate à violência extrema contra as mulheres ao usar a “legítima defesa da honra”. Doca foi julgado em 1979, representado pelo renomado advogado Evandro Lins e Silva, que usou a tese, afirmando que Ângela era uma “mulher fatal”, capaz de levar qualquer homem à loucura. À época, matar “por amor” ou em descontrole “sob forte emoção” eram argumentos aceitos pelos jurados e pelo público, já que Doca fez uma legião de fãs e defensores.
Doca foi condenado, inicialmente, a dois anos de prisão, mas respondeu em liberdade. Depois do movimento feminista, ele foi levado novamente a julgamento em 1981 e condenado a 15 anos de prisão, cumprindo quatro em regime fechado, depois para o semiaberto. Morreu em 2020, aos 86 anos, de infarto.
Como você conheceu Ângela?
Era abril de 1976, quando eu estava indo a Paris com algumas amigas, entre elas Marialice Celidônio. Já no avião, vejo Ângela Diniz, a famosa “Pantera de Minas”… Não queria dar papo porque eu a achava muito “patricinha” e, de todo modo, não íamos mais encontrá-la. Fiz carão e fui embora. Quando vimos, ela estava no mesmo hotel. Era primavera na cidade, alta estação, festas, exposições… No primeiro dia, demos umas voltas pela Rive Droite e retornamos ao hotel para encontrar Ionita Guinle, que estava no Plaza Athenée e viria nos visitar. Ao chegarmos, lá estava Ionita conversando com a Pantera! Tivemos que nos sentar na maior cerimônia, sem saber o que falar ou fazer com aquela mulher “envolvida em assassinato” — em 1973, ela era amante do empreiteiro Tuca Mendes, quando o caseiro de Ângela foi morto com três tiros; logo depois, Tuca assumiu o crime, dizendo que o caseiro a havia assediado. Depois de certo tempo, me levantei e perguntei a Marialice se estava de pé a nossa ida à Galeries Lafayette, no dia seguinte. Ela disse que ainda estava cansada do voo, Ionita também negou; então Ângela disse que adoraria ir comigo. Eu não podia dizer não, né? Chegamos às 11h e saímos de lá às 6 da tarde, às gargalhadas, procurando um táxi pra poder enfiar um elefante de tecido gigantesco que ela comprou. Os táxis passavam batido, óbvio. Depois de uma hora, já desistindo, um carro parou e ofereceu carona. Agradeci e dispensei, mas ela insistiu e tacou o elefante no carro. Foi o primeiro dia de uma curta, mas intensa amizade com uma pessoa maravilhosa, cheia de qualidades, amiga das amigas, excelente mãe, excelente filha, companheira para todas as horas.
Qual a primeira coisa que vem à sua cabeça quando pensa em Ângela? Vocês viraram mesmo unha e cutícula?
Porra, que burrice ela foi fazer! Fora essas histórias todas, o que lembro é da mãe que perdeu os filhos e chutou o balde. Era uma pessoa que ajudava a todos. Nos demos superbem e nos falávamos diariamente quando voltamos para o Rio. Mas nos encontrávamos pouco, a não ser quando eu passava na casa dela e vice-versa. Eu tinha casa na Serra, ia praticamente todos os fins de semana, e ela frequentava as noitadas. Nossa vida era bem diferente: eu era mãe dedicada a duas filhas, e ela conhecia muitos homens, era linda e cobiçada, mas chorava muito pela perda da guarda dos filhos depois do escândalo do assassinato do caseiro. Ângela tinha confessado a autoria para não prejudicar a vida do amante… Essa era a Ângela! Morria de saudades da filha, Cristiana, com quem falava, escondida do ex-marido, várias vezes ao dia. Ela era uma pessoa doce, meiga, engraçada e cheia de vida. Com certeza, nossa amizade duraria a vida inteira, porque a gente se respeitava. Minhas filhas a chamavam de “tia Pantera”. Hoje, ela seria uma mineira gorda em casa, cuidando dos netinhos. Esse período de Pantera foi uma violação com ela mesma, porque não era o seu temperamento. Era uma fase em que ela achou que um dia passaria, até ter a guarda dos filhos de volta. Era isso que ela tinha certeza que aconteceria no futuro.
Então ela levava a fama sem deitar na cama?
Sempre quis chamar atenção para esse fato: todos a chamavam de puta, mas o que ela era, sim, uma puta mãe… Também falavam que ela era cocainômana, mas ela não gostava de cheirar; o negócio dela era maconha. Quem cheirava era o Doca; na realidade, ele colocava o pó no remédio de nariz e pingava o dia inteiro. Você achando que era sinusite, e era pó! E ela andava com todos que cheiravam, porque era comum na época, mas ela não gostava. Tinha muito bom caráter, criada para ser uma boneca. Por exemplo, tínhamos uma amiga em comum que começou a cheirar depois que o marido a trocou por outra mulher e começou a vender tudo que tinha em casa. Ângela pediu ao Ibrahim que descobrisse quem era o traficante. Foi à casa dele e comprou de volta todas as peças — sabendo que a amiga gostava, pagou o dobro, o triplo do que o traficante pedia. Internou nossa amiga na melhor clínica de desintoxicação; ela ficou bem, e Ângela devolveu tudo. Ângela era boa, só pensava nos filhos. Quando perdeu a guarda, ela entrou num processo autodestrutivo. Uma vez, bateram à porta da casa dela porque os vizinhos fizeram uma denúncia sobre tóxicos no apartamento da Rua Anita Garibaldi. Em vez de jogar fora, ela disse aos policiais que fumava maconha, contando que perdeu a guarda dos filhos, que, em vez de tomar tarja preta, fumava. Buscou a trouxinha e deu aos guardas. Qualquer outra pessoa jogaria pela janela, mas ela entregou… Daí, eles a levaram.
Acredita que ela era ingênua?
Com certeza! É mineira, né? E mineiro é uma coisa pura. Depois que aconteceu o assassinato do caseiro em Minas, o ex-marido (ela se casou aos 17 anos, com o engenheiro Milton Vilas Boas, de 31), pediu a guarda dos filhos. Mas a relação já não estava boa, porque ele era gay: um dia, ela entrou em casa, e estava lá o marido com outro. Daí, ele começou a dar desculpas de que isso nunca tinha acontecido e começou a enchê-la de joias. Mas ela se revoltou, conheceu o Tuca Mendes e teve aquela confusão. Ela foi criada para ser uma bonequinha de luxo, ia para chás… Acho que não tinha noção nenhuma das consequências.
Você acha que isso aconteceu também por ela ser muito bonita, e os homens ficarem loucos?
Ela enlouquecia os homens porque era sedutora; isso era mais forte do que ela. Nunca a achei tão bonita, mas era imbatível na sedução e costumava desafiá-los. Uma vez, numa festa no apartamento do turco (Ibrahim Sued, então namorado), que andava armado, ela provocou ciúmes; por isso, ele a chamava de puta, dizia que ia arrebentar ela na frente de todo mundo, e ela respondia: “Não vai me arrebentar porque hoje fui ao cabeleireiro”. Angela foi até a janela, colocou as pernas pra fora e disse a ele que a jogasse dali se quisesse matá-la, porque chegaria ainda linda lá embaixo e, não, ferida com arma de fogo. Óbvio que a festa acabou, e todo mundo foi embora apavorado. Ela era abusada porque ficou com raiva do mundo. Não tinha nada a perder depois da ausência dos filhos; então meio que cagou.
Ela namorava o Ibrahim Sued quando saía com Doca?
Ela namorou o Ibrahim por deslumbramento, mas o Doca perdeu a cabeça. Ela conheceu o Doca em agosto de 1976, numa festa a que ela foi com o turco, em São Paulo, na casa do Doca e Adelita (Adélia Scarpa, então casada com Doca). Daí começou a brincadeira: o melhor amigo do Doca também era melhor amigo da Ângela, o Chico Matarazzo, que encobria o encontro dos dois. Um dia, ela me ligou, dizendo estar perdidamente apaixonada pelo Doca. Eu falei: “Puta que o pariu, Panta (apelido de Pantera), o Doca? Pelo amor de Deus…”. Porque ele era um galã e comia todo mundo; não servia pra você se apaixonar, era só pra pegar, além do mais, ele passava o dia cheirado e ficaria com ela pelo troféu de ter pegado a “Pantera de Minas”. Achei que não daria em nada; então, ela respondeu que ele também estava apaixonado. Nos primeiros meses da paixão, nos afastamos.
Foi uma louca paixão?
Mais ou menos uns 10 dias antes do assassinato, ela me ligou e disse que estava muito feliz com o Doca, que queria se casar e ir a uma missa: me perguntou se poderia comungar. Respondi que o meu Deus dizia que eles poderiam comungar, pois queriam limpar a vida e seguir o caminho. Ela estava muito feliz, muito apaixonada. Estava tudo certo eu e Renato, meu marido, passarmos o réveillon com eles, mas ainda estávamos na dúvida, porque sabíamos que ela e o Doca brigavam muito por ciúmes. Búzios já estava cheio; todos os dias, as pessoas começavam a beber e cheirar logo cedo… No dia 28, ela me ligou, dizendo que eu não precisava levar roupa para a festa porque tinha comprado um lindo vestido com uma fenda nas pernas, e o Doca a tinha proibido de usar! Depois de um imprevisto, a gente só poderia ir na véspera. Ela respondeu então: “Vem logo, estou com muitas saudades, e o Renato vai distrair o Doca”. Doca já estava implicando, com ciúmes da Gabriele, uma alemã que jogava gamão o dia inteiro com eles, na casa que era do Zé Hugo Celidônio; ela alugou, e era o point: todo mundo ia pra lá beber e se drogar.
Onde você estava quando aconteceu?
Estava num jantar, já era praticamente feriado. Bebi todas e atendi ao telefone daquele jeito, com alguém dizendo que o Doca tinha matado Ângela, que ela estava toda ensanguentada no meio da rua, meio nua, e eu teria que ir lá para vesti-la e organizar o translado do corpo. Avisei que não estava em condições e pedi a uma outra amiga. Fiquei em choque, sem conseguir falar, sem conseguir chorar.
Acredita que a droga tenha potencializado tudo?
Com certeza! A droga, junto com o espírito de Búzios no verão, era muita loucura — todo mundo era doidão naquela época. Então, você ficava na praia, emendava um dia no outro, bebendo, fumando maconha, cheirando 24 horas. Óbvio que ninguém estava normal. E tinha o tal do Mandrix, remédio para dormir que vendia sem receita, mas, se tomado em movimento, produzia efeito contrário, deixando a pessoa ligada e feliz. Você ficava “mandrake”: por exemplo, você estava almoçando um camarão e, de repente começava a ver o camarão crescer, andar e querer te pegar. Eu já fiz tudo: lança-perfume, pó, tudo, mas sempre gostei de ficar com os pés no chão. O povo comia cogumelos e ficava vendo coisas incríveis; eu não via nada, mesmo depois de muita concentração. Nunca tive nenhuma pretensão além de me divertir.
O assassinato foi o estopim para o movimento feminista… A Ângela era feminista?
Nunca, ela era mulherzinha gueixa. Naquela época, ainda mais em Minas, as mulheres eram criadas pra isto: obedecer, casar, ter filhos, e ela era também gueixa com os homens. Ela seduzia, devia ter algum truque, porque os caras ficavam todos loucos.
Mas ela era uma mulher dona de si? Porque muita gente fala isso…
Não sei se eu vejo dessa maneira; ela foi uma pessoa criada cheia de preconceitos. Uma pessoa livre não está nem aí, bebe, dá risada, não se importa. Ela foi criada pra fazer um bom casamento. Nesse caso do caseiro, por exemplo, muita gente falou que o Tuca matou por ciúmes, porque eles fizeram uma suruba com o cara, mas seria impossível porque ela era racista ao extremo, e o cara era horroroso, não tinha os dentes da frente, não tomava banho. Ela jamais transaria com ele.
Você culpou ou ficou com raiva do Doca?
.O Doca fugiu para a fazenda da minha cunhada em Cravinhos, perto do Ribeirão Preto. O irmão mais velho do Doca era o melhor amigo do meu cunhado, João Luiz. Na hora do desespero, ele foi pra essa fazenda que ficava no meio do nada; depois de 20 dias, ele resolveu se entregar. Quando ela morreu, recebi duas mensagens lindas: uma do Ibrahim, dizendo que esperava que nossa amizade não terminasse, e outra do Doca, falando que, desde que ela morreu, não houve um só dia em que ele não tenha pensado nela e não tenha escrito uma frase pra ela diariamente. Encontrei o Doca, se não me engano, umas duas vezes depois. Ele era um cara muito agradável, e a sua vida acabou. Não fiquei com raiva, porque ela também provocava. Até visualizei a cena, porque vi a Angela fazer isso várias vezes. Sabe, ela dizia “duvido que você faça isso…” Ela tinha esse poder de tirar uma pessoa do sério, provocar. Exemplo: ela não transava com mulher, mas um dos ataques de ciúme do Doca em Búzios foi por causa de uma alemã, a Gabriele, que jogava gamão com Ângela; daí Doca começou a achar que ela estava dando em cima da Ângela. Foi o suficiente para ela provocá-lo com isso; acredito que fazia parte do jogo, porque, acho, eles tinham um relacionamento sexual meio violento. No fim, ela provocou, provocou, e ele perdeu a cabeça, ainda mais depois de ter bebido e cheirado a alma, né? Perdeu a noção das coisas. Nunca fiquei com ódio do Doca. Por mais que eu gostasse dela, entendi que ele perdeu a cabeça. Sei que isso acabou com a vida dele.
Por Dani Barbi