”Quem mais sabe de mim / É o espelho do meu camarim”, diz a canção de Ivan Lins e Vitor Martins (parceiros que até rimam, de tão afins).
“Quem sabe de mim sou eu”, concorda Arlindo Cruz. E justifica: “Sou eu que segura a marimba / Sou eu que firmo na curimba / Pra corda não rebentar”.
“Sabe de mim” — arremata Suely Costa, na voz de Nana Caymmi — “mas parece que bebe”.
Eu — abstêmio, sem marimba, curimba ou camarim — só sei que quem sabe de mim é o algoritmo.
Ele decidiu que devo pintar o cabelo, e me impinge anúncio atrás de anúncio, com produtos que mostram que livrar-se do grisalho faz desaparecer as rugas, o semblante carregado e, suponho, as dores da existência. Basta o prosaico uso de loções ou sabonetes que deixam as madeixas e a barba com um tom mais escuro e natural. Para ser exato, um tom de cabelo naturalmente pintado e artificialmente escurecido.
Um homem que pinta o cabelo (e a barba) é capaz de tudo. Inclusive de acreditar que ninguém percebe que aquela cor de cabelo (e de barba) é como o kani, a fórmica e o Q-Suco: não existe na natureza.
Nem precisa ser o acaju ou o asa de graúna, popularíssimos entre políticos. O grisalho da tintura tem um quê de lado B de papel alumínio, de traje de vilão de um episódio qualquer de National Kid. E alguém que se lembre de qualquer episódio de National Kid deveria ter juízo suficiente para não cair nessas esparrelas.
Há alguns meses, só porque fui a São Paulo, o algoritmo também encasquetou que eu devia comprar um imóvel por lá. E desandou a me oferecer todos os lofts, estúdios e outras modernidades microscópicas do mercado imobiliário da pauliceia.
Contra-ataquei clicando em anúncios de camisas floridas, tipo as do Bolinha ou de americano em férias. Por um breve período, o algoritmo se deixou enganar, mas logo percebeu que era um recurso diversionista e retomou o foco: pelos meus dados e fotos, eu era o pato, ops, o consumidor ideal para tintura capilar e, por que não?, uma garçonnière na Vila Mariana. Jamais para camisas com hibiscos, bananas e maritacas.
Mal sabe o algoritmo que ele está coberto de razão. Olho para minhas fotos de dez, cinco, dois anos atrás e só reparo no cabelo rareando em quantidade e, pior, diversidade (quase que só brancos). Penso no que não fiz, e fantasio um fauno com direito a meia entrada, desconto em farmácia e prioridade no embarque lutando com todas as forças contra a aposentadoria compulsória das lides eróticas.
Torço para que saia alguma matéria pseudocientífica comprovando que a insônia tem impacto sobre o nível de melanina dos cabelos, e assim eu possa justificar o súbito escurecimento capilar. Para que o Rio entre da dança dos imóveis infinitesimais — como já aconteceu no Japão, em Nova York e em São Paulo – e a garçonnière (sonho de consumo de todo homem na década de 50) esteja ao alcance do meu bolso.
(Peralá: quem precisa de garçonnière em 2023? Quem iria para uma garçonnière com um sujeito de cabelo pintado?)
“Sabe você o que é o amor?” — perguntam Vinícius e Carlinhos Lyra. Eles sabem, eu não sei.
“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?” — me indaga Lupicínio. Não, eu nem sei se o que trago no peito é queixume, mau jeito, saudade ou bolor.
“Você não sabe amar, meu bem, / Não sabe o que é o amor, / Nunca viveu, nunca sofreu, / E quer saber mais que eu”, respondo ao algoritmo.
Se, a partir deste texto, ele começar a sugerir saites de relacionamento ou poções de amor e simpatias de amarração, vou dar uma de Gilberto Gil: “Quem sabe de mim sou eu”. Aí clico de novo nas camisas caribenhas e… “Aquele abraço!”.