Lá se vão mais de 40 anos desde que Renata Almeida Magalhães entrou num set de filmagem, em “Menino do Rio” (1981), aos 19 anos, como assistente de direção. No primeiro dia e em todos de gravação, um produtor falava que ela ia fazer alguma merda. Não fez e trabalhou até o lançamento, pra nunca mais sair de trás das câmeras.
Corta para 2023: a produtora acaba de ser escolhida por Eduardo Paes para comandar a RioFilme, empresa pública de investimento em audiovisual. Ela pega uma boa fase: no ano passado, foram 7.174 dias de filmagem na cidade, o mesmo número de Madri e, em Paris, foram 10.800. Ao todo, 53 longas e 66 séries foram rodados por aqui, em 2022 (um aumento de 76% em comparação ao ano anterior). No primeiro trimestre deste ano, já foram 2.213 dias de filmagens na capital. Renata assume o posto de Eduardo Figueira, nomeado em 2021, quando foram investidos R$ 78 milhões no audiovisual carioca no último biênio, impactando o setor em mais ou menos R$350 milhões.
Agora, a Prefeitura vai investir, só este ano, mais de R$ 64 milhões no Pró-Carioca Audiovisual, programa lançado em julho, que será repassado pela RioFilme, saindo de recursos municipais e da aplicação da Lei Paulo Gustavo.
Renata está acostumada à pressão: no ano passado, ela também se tornou a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Cinema desde sua criação, em 2002. Nessa quarta (23/08), comandou a 22ª edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, na Cidade das Artes — foram mais de 200 profissionais indicados em 34 longas brasileiros e 12 estrangeiros, além de curtas, séries, docs, entregando 29 troféus Grande Otelo. “Chegar à 22ª edição significa que somos muito mais poderosos do que poderíamos imaginar. Estarmos aqui, tendo ultrapassado tudo o que passamos nos últimos anos, significa que, certamente, dias muito melhores estão à nossa espera”, diz ela.
Renata, advogada de formação, é uma das mais atuantes do setor, tendo participado de vários filmes, como os de Cacá Diegues, seu marido há 42 anos. Os dois se conheceram fora dos sets, quando ele decidiu vender seu apartamento na Gávea, e quem apareceu para comprar foi Renata, ou seja, nunca mais saíram dali.
Aqui, ela responde sobre cultura, política, mulheres no cinema e como está o cenário atual, com toda a energia de quando se começa alguma coisa. Com um brinde a se conseguir o que quer, leia sua entrevista.
Em que sua vida muda a partir desse cargo, apesar de conviver de perto com o cinema há tanto tempo?
É a primeira vez que exerço um cargo público. Pra mim, o cinema vai deixar de ser privado, com meus projetos individuais um pouco de lado para eu poder ajudar o cinema no coletivo. Claro que é uma super-responsabilidade, mas já ultrapassei tantos ciclos… Porque a vida do brasileiro é feita de ciclos, e estamos começando depois dos últimos anos, quase tendo que refundar o cinema, a cultura, que são sempre o alvo principal quando a direita chega ao poder. Vou chegar à RioFilme tendo o prefeito do nosso lado. Eduardo Paes é animado com o Rio e sabe da importância da cultura para uma cidade, um estado, e já com um edital na rua, que tem dinheiro para este ano. É basicamente isso. Vou sair da atuação dos meus filmes, para os filmes de todos; então eu acho um bom desafio. Estou animada.
Quais seus primeiros passos?
Quando estive com Eduardo Paes e aceitei essa missão, a primeira coisa que falei é que eu queria mudar o nome de RioFilme para RioFilmes. Paes falou que é mole botar um “s” porque não podemos ter uma empresa de um filme só. Quero que sejam muitos filmes. É um passo simbólico, mas que eu acho que traduz o espírito, porque o Rio é e sempre será a alma do Brasil. O Rio é cosmopolita, recebe todos e, por isso, tem que ter o “s” uma empresa que esteja junto com muitos filmes.
Qual a importância da empresa para o Rio? A cultura é um dos ativos mais importantes da cidade, e o audiovisual tem uma boa parcela dessa economia…
Como disse, o Rio é a alma, o coração do Brasil e, quando vamos mal, o País acompanha. Quando a gente vai mal, bate aqui primeiro. Então o Rio tem esse papel de ecoar nossa alma, e a cultura tem tudo a ver com isso. A cidade é essa coisa misturada, onde a praia é lugar de todos, onde a gente se mistura querendo ou não, e isso tem que ser celebrado. O Rio perdeu muito espaço no audiovisual nos últimos anos e eu acho que uma das missões é trazer a cidade para o centro do audiovisual de novo. Claro que isso passa pelos cenários naturais, mas também significa que o Rio é um lugar para todos os cineastas, especialmente para o independente. Uma das minhas metas é realmente fazer a RioFilmeS grande de novo, uma empresa que já foi responsável, por exemplo, por “Central do Brasil” (1998, Walter Salles, que chegou ao Oscar). O Cinema Novo, por exemplo, é um movimento carioca apesar de ser composto por baianos, alagoanos, paulistas e mineiros. Eu quero que o Rio seja esse espaço cosmopolita e internacional, de ponta da cultura e do audiovisual brasileiro. E temos o maior orçamento que a empresa já teve e, como eu sei inventar dinheiro, porque é isso que o produtor faz, quero trazer ainda mais para a gente ser um player importante no mercado e mostrar de vez que uma das maiores indústrias do Planeta passa pelo Rio.
Você começou no cinema muito jovem. Desde então, passou por vários governos, além de ser casada com um grande cineasta. Qual foi o momento mais crucial no seu ponto de vista e o melhor para o cinema brasileiro?
Boa pergunta. É difícil colocar o audiovisual num entendimento do poder que ele tem. Nos EUA é, talvez, o maior instrumento econômico desde a Diplomacia Cultural do Cinema na Política Externa de Boa Vizinhança (1933-1945), durante o governo de Franklin Roosevelt, quando ele entendeu a importância do cinema americano para o mundo, e até criou o slogan “films follow flags” (“filmes vão atrás das bandeiras”). Não à toa, a Motion Picture Association (MPA), que é uma das grandes mídias americanas, está instalada ao lado da Casa Branca, em Washington, e não tem nada a ver com Hollywood. É uma das indústrias que mais geram dinheiro nos EUA, e o mundo inteiro entendeu isso; até Stalin, na União Soviética, sacou isso… Filmes viajam e nos representam, nos traduzem. Aparentemente, no Brasil, só a direita e a extrema direita entendem o poder da cultura e do audiovisual, porque toda vez que eles chegam ao poder, a primeira providência é acabar com a gente, e isso foi claríssimo no governo Collor, quando, numa canetada, ele extinguiu a Embrafilme, que era umas das melhores leis de incentivo jamais feita. Até agora, com o que aconteceu com o Bolsonaro, que não deu uma canetada, mas fechou o acesso da cultura aos recursos que já são destinados à cultura e não se confundem com educação ou saúde, nem nada, né? São recursos da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) que são pagos pelas pessoas que fazem ou exibem audiovisual. Então, não é “o dinheiro saiu do hospital para o cinema”. Dizer que os produtores culturais mamam na teta do estado é uma balela. Agora, a gente enfrenta, em todos os sentidos, uma indústria muito poderosa – quando fazemos um filme, na porta ao lado está uma “Barbie”, um “Homem-Aranha” ou “Tubarão”, e tudo custando o mesmo preço. A questão do audiovisual brasileiro é muito delicada porque a gente é muito pequenininho diante dessa indústria americana tão poderosa. Não estamos na mesma situação do que uma peça de teatro ou um show de música com uma atriz americana ou um Mick Jagger ao lado do show do Caetano, estamos lutando com uma “Barbie” (maior bilheteria do ano, com US$ 575.4 milhões arrecadados até agora). O mercado não é bobo e, se a gente não tem certos apoios, viramos a formiguinha falando com o elefante e somos literalmente esmagados e, ao mesmo tempo, sabemos que somos tão diversos quanto o cinema americano e temos que dar bola pra isso.
Mas qual o pior e o melhor momento?
Trocando em miúdos, os piores momentos são sempre quando a direita e a extrema direita chegam ao poder e eles têm essa percepção de que nós somos muito perigosos e acabam com a gente. Os melhores momentos são quando o Brasil se ama, como na época do Fernando Henrique (presidente de 1995 a 2003). A retomada do cinema brasileiro teve também um momento importante no final da ditadura, pegando uma brecha do nacionalismo da época, no auge da Embrafilme, que também era financiada com recursos das distribuidoras estrangeiras; então, nunca saiu dinheiro da educação nem saúde, e chegou a ser a maior distribuidora latino-americana. Não que os cineastas também não tenham seu pedacinho de culpa, porque, às vezes, damos um tiro no pé, mas a empresa teve um papel essencial, que fazia com que o exibidor de um sucesso de “Os Trapalhões”, por exemplo, tivesse que levar junto um mais independente, como os filmes de Júlio Bressane numa negociação no mercado, mas onde a gente tinha um certo poder. Quando o Brasil gosta do Brasil, o cinema brasileiro vai bem; quando o Brasil não gosta do Brasil, o cinema vai mal. Espero que esses ciclos não sejam ciclos, mas que sejam permanentes.
Como estamos de cinema no Rio atualmente?
O Rio reflete o Brasil, como eu disse, e temos algumas lutas, como a de ampliar a rede de exibição. Hoje, a gente tem um enorme número de filmes inéditos que não conseguem ser exibidos, e essa é uma das nossas missões. Hoje em dia, é mais difícil ir ao cinema, porque você tem que ter aplicativo, saber lidar com a Internet, saber o título exato pra encontrar a sala. Esse é um problema geral, mas o maior deles é como fazer os filmes chegarem às salas cariocas.
Como mulher, o que já foi conquistado e o que falta? Você é a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Cinema desde sua criação, em 2002. Alguma história de bastidor que a tenha marcado, sobre ser mulher no cinema?
Sempre fui louca por cinema e acho que é uma questão familiar, porque meu avô, nascido em 1908, era louco por cinema, a coisa mais moderna que existia. Meu pai adorava, era amigo do cinema novo… Aos 12 anos, eu tive aula de cinema no colégio São Patrício, num projeto que até hoje é dirigido por Marialva Monteiro. Quando ela explicou que uma lente zoom trazia objetos para perto, pensei “isso é mágica”; então, cinema pra mim, é mágica. Depois eu fui entendendo que as mulheres tinham um determinado papel. Existiam poucas diretoras como a Júlia de Abreu, tivemos pioneiras como Helena Solberg, mas estava combinado que, quando elas participavam, faziam coisas muito “femininas”, meticulosas; então, a mulher podia ser continuísta, figurinista, montadora… Mulheres na produção ou na direção não era coisa normal. Em “Menino do Rio”, eram 36 pessoas e, tirando a maravilhosa Maria da Guia, que era camareira da LC Barreto, e uma assistente do Calmon, tinham eu e minha amiga Viviane Soares Sampaio, ambas tínhamos fama de “patricinhas”. Todo dia que a gente chegava ao set, um cara da produção falava que a gente ainda ia fazer alguma merda até o filme acabar.
E vocês fizeram?
Então, assim que a gente começou a trabalhar, não só não fizemos nenhuma merda, como também fiquei no filme até o lançamento, que foi uma coisa incrível. Viviane virou figurinista importante durante muito tempo, mas era muito difícil. Me lembro da Isabela Fernandes perguntando pra Affonso Beato (diretor de fotografia), no começo dos anos 1980, o que que ela tinha que fazer pra ser assistente de câmera, e o Affonso respondeu: “Musculação, porque você vai levar todas aquelas câmeras que pesam 50 kg”. Por isso, não era um ambiente “bem-vindo mulheres!” Quando esse produtor, no primeiro dia, disse que a gente ia fazer alguma merda, resolvi ficar amiga da equipe da pesada — os maquinistas, eletricistas, porque eram esses caras que iam me proteger, enfim, fui muito mais bem recebida na pesada do que na equipe de produção. Hoje, quando vejo equipes predominantemente femininas, fico muito emocionada e querendo que as pessoas entendam que isso é muito importante. Tudo bem que “Menino do Rio” tem 40 anos, mas é uma ocupação de espaço muito importante, e eu gostaria que as mulheres valorizassem e entendessem que isso vem de muito tempo. Não estou falando só da minha geração, mas da geração vinda antes de mim. A gente foi ocupando esse espaço de uma maneira poderosa e competente. Fico muito feliz em ver que hoje nenhum homem mais vai poder dizer pra uma menina ou uma mulher que ela vai fazer alguma coisa errada no set até o filme acabar. Isso não existe mais, não tem mais esse lugar.
Em junho, a deputada Marina, do MST, pediu à RioFilme a ampliação da cota para pessoas negras de 20% para 50% nos editais referentes à Lei Paulo Gustavo. O que você pensa sobre isso? O programa de Fomento Carioca de 2023 vai investir mais de R$ 64 milhões no setor, por meio da RioFilme, o maior montante distribuído por meio de editais desde a sua criação em 1992. Isso seria uma grande evolução?
Os editais estão na rua, e é claro que as políticas afirmativas são importantíssimas, as cotas são importantíssimas, mas acho que, acima de tudo, é preciso identificar aqueles cineastas que precisam fazer aquele filme, sabe? Porque fazer filme também é uma coisa que se aprende na escola, como faz um plano, contraplano, mas o que faz um filme ser importante, no meu ponto de vista, é sobretudo a necessidade daquele artista de falar determinada coisa. A loucura de pensar ‘se eu não fizer isso, a minha vida não faz sentido’, quer dizer é a necessidade de botar na tela aquilo que está dentro do seu coração. Daí, não importa se você é homem, mulher, preto, branco… E essa necessidade faz diferença, o querer muito, porque fazer cinema não é fácil. Até já brinquei lá na academia que ninguém pode falar ‘como foi difícil fazer esse filme’, porque isso é pleonasmo e não é uma atividade em que você vai ficar milionário. Você quer ser esse milionário? Vai ser advogado, vai ser outra coisa, não fazendo filme. Fazer filme é uma necessidade artística de a pessoa ter que falar alguma coisa muito essencial. Eu gosto quando consigo identificar essa urgência. Os editais estão na rua e o da RioFilme é bem equilibrado e democrático. Tenho muito orgulho de ter sido produtora do ‘Cinco vezes favela agora por nós mesmos’, ter levado meus cineastas maravilhosos da periferia do Rio para o Festival de Cannes. Quanto mais democrático, melhor. Quero arrumar mais dinheiro para RioFilme fazer outros filmes e entrar em outras áreas e ajudar que essas produções sejam vistas, distribuídas, desde voltar o projeto escola até, sei lá, fazer da RioFilme um ponto de encontro de cineastas cariocas, promover esse cinema que se faz no Rio dentro do Rio e fora do Rio. Estamos aqui com o edital, estou chegando com ele na rua e, se eu conseguir fazer com que mais filmes venham pela frente, já vou ficar feliz, porque é isso que eu quero. Que tenham mais filmes e que eles sejam mais vistos e que a gente celebre e entenda o poder do cinema brasileiro.
Por Dani Barbi