A esta altura, todo mundo já sabe que, no novo filme baseado em “Branca de Neve e os sete anões”, Branca de Neve não é branca, os anões (à exceção de um) não são anões e, a julgar pela foto de divulgação, os sete são oito.
Sim, tudo muda. O filme que Walt Disney fez em 1937 já tomava liberdades em relação ao conto “Schneewittchen”, publicado pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm em 1812. A madrasta, por exemplo, não era obrigada a calçar sapatos em brasa e dançar até cair morta. Afinal, as crianças de 1937 eram bem mais sensíveis que as de 1812.
Pois os adultos de 2023 são infinitamente mais sensíveis que as crianças de 1937: hoje, a branquitude de Branca incomoda. Pessoas portadoras de nanismo viverem segregadas, trabalhando – sem carteira assinada ou direitos trabalhistas – em minas de carvão, idem. Mais ainda se perpetuarem o bullying estrutural da sociedade, microagredindo-se mutuamente com referências depreciativas às respectivas patologias: a alergia crônica de um, a hipersonia de outro, a distimia de um terceiro, a sexualidade ambígua de um quarto, a opressão intelectual de um quinto, a alienação de um sexto e, last but not least, a masculinidade tóxica de um sétimo.
E, vamos combinar: que rainha perde tempo com costura, tendo personal stylists para lhe trazer as roupas prontas? Mesmo em 1812, que diabos faria uma rainha costurando ao relento? Ou debruçada na janela – porque só assim para uma gota de sangue cair na neve?
Não, suspensão da descrença é uma coisa; estupidez é outra. Já estava passando da hora de atualizar essa história.
Numa releitura contemporânea, a primeira-dama (sim, agora é uma república) está cumprindo agenda social numa comunidade quilombola quando seu marqueteiro lhe recomenda adotar uma criança, o que poderá render bastante engajamento nas redes sociais.
Ao levarem a criança (uma menina trans, recém-nascida), a primeira-dama descobre, lendo a coluna do Léo Dias, que seu marido a trai com a personal stylist da presidência. Furiosa, ela manda sua assessoria de imprensa divulgar uma nota falando da relação abusiva em que vivia, e larga tudo – marido, filha recém-adotada, palácio, mordomias – e viaja para as Maldivas com o seu personal trainer, com quem tinha um caso.
O presidente assume o relacionamento com a personal stylist, que sente inveja instantânea da pequena Melania (um bebê altamente instagramável). Numa enquete no Tuíter (se o filme demorar a sair, já pode ser no Trédi) descobre que Melaninha é considerada mais esteticamente opressora do que ela.
Aí a história segue o rumo normal: a nova primeira-dama contrata um influêncer para destruir a reputação da criança. O influêncer, apesar de ser influêncer, tem princípios éticos e não promove o linchamento virtual da menina: apenas a abandona na gôndola de xampus no primeiro dia da promoção de aniversário do Guanabara.
Sabe-se lá como, a criança vai parar em Santa Teresa, numa comunidade poliafetiva, formada por sete (ou oito, ou nove, às vezes até dez) pessoas desconstruídas. Ali, aprende a linguagem neutra, a falar “estadunidense”, “decolonialismo”, “corpos pretos” e “saberes”.
A personal stylist continua como primeira-dama (o presidente está no quarto mandato), mas fez harmonização facial, e quando pergunta nas redes sociais se existe alguém mais bonita do que ela, a resposta é “KKKKKKKK!”.
O resto será escrito pela Inteligência Artificial, para economizar roteirista. Mas Melania deve ser salva por uma atriz não binárie – e, sim, a personal stylist malvada vai dançar na festa de casamento usando sapatinhos em brasa, porque crueldade do bem é plenamente aceitável.
Se fizer sucesso, o novo filme abrirá caminho para um filão. Virão a seguir “O gato de botas” (contando as aventuras de uma cobra descalça), “João e o pé de feijão” (as peripécias de Ariel e seu cultivo de maca peruana) e “O lobo mau e os três porquinhos”, estrelado por uma arara, um boto cor de rosa, um mico leão dourado e quatro capivaras.
Porque é muito importante adaptar as obras tradicionais às novas mentalidades. Sem perder a essência jamais.