O caos na saúde pública sempre existiu e está longe do fim, em qualquer governo, seja ele estadual, municipal ou extraterrestre. Como exemplo, o recente caso, quando André Luiz do Nascimento Soares, 46 anos, e sua filha Samara, 23, agrediram a única médica no plantão do Hospital Municipal Francisco da Silva Telles (HMFST), em Irajá, Sandra Lúcia Bouyer Rodrigues, com socos e pontapés, pela demora no atendimento. Se todos começassem a espancar pessoas por isso, na rede pública ou na privada, imagina o que seria?
O episódio expõe a rotina na vida de quem usa o sistema público, o profissional ou o paciente; na maioria das vezes, é preciso mesmo ser paciente. Como consequência, Arlene Marques da Silva, 82, internada na sala vermelha, sofreu uma parada cardiorrespiratória e morreu. Segundo sua filha, ela começou a passar mal quando viu o homem socando a médica.
Naquela madrugada, Sandra era a única médica para mais de 60 pacientes — o colega de plantão passou mal e não pôde comparecer.
O responsável pela rede de Saúde da cidade é o médico sanitarista Daniel Soranz, com mestrado em Políticas Públicas e doutorado em Epidemiologia.
Você pode esbarrar com ele por aí, em shows, festas, ou qualquer evento social, mas a garantia de corpo e alma é mesmo no corredor de algum centro de atendimento popular – se duvidar, ele mesmo atendendo alguém. É um dos homens fortes de Eduardo Paes no controle da epidemia de H1N1; depois criou as Clínicas da Família e organizou a rede durante os jogos Olímpicos (2014 a 2016, enfrentado surtos de dengue, zica e chicungunha). Ele é também professor pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Soranz voltou à pasta, pela terceira vez, em maio, depois de licenciar-se do cargo de deputado federal (recebeu quase 100 mil votos). Agora pretende direcionar sua energia para a articulação política e integração das redes estadual, municipal e federal de saúde. Entre suas metas, recompor 70% de cobertura da Saúde da Família (hoje, em 55%) e finalizar, ainda este mês, as obras de reforma de todas as UPAs municipais.
No mais, Soranz conhece muito bem o mapa-da-saúde-carioca, a ponto de saber de cor o número de leitos no Rio e quantos deles estão fora de linha, digamos assim. Ele foi um exemplo na luta contra a covid, sendo que o Rio foi uma das capitais que alcançaram a maior cobertura vacinal, mas está deixando a desejar na dose de reforço.
Embora você seja mais jovem do que muitos que já ocuparam esse posto, tem uma grande experiência em políticas públicas desde o início da sua carreira. Qual era o seu objetivo ao escolher a Saúde Pública? Seu ponto de vista mudou muito quanto a suas pretensões?
Sempre quis trabalhar na área da Saúde. Venho de uma família de médicos e sempre vi muitas pessoas precisando de um atendimento de saúde, mas nem sempre as pessoas conseguiam esse atendimento. Isso influenciou na minha escolha da profissão e na minha especialidade. Sou médico de família e comunidades, comecei em Manguinhos. Fiz minha especialização em Saúde Pública, meu mestrado em Políticas Públicas e meu doutorado em Epidemiologia. E sempre quis trabalhar para construir um sistema de saúde público no qual tanto pessoas mais pobres quanto as mais ricas conseguissem ter acesso a um sistema de saúde de qualidade, que pudessem viver mais e melhor. Hoje, faço exatamente isso como deputado federal e também na Secretaria de Saúde do Rio.
Nada justifica o ataque selvagem à médica Sandra Lúcia Bouyer Rodrigues, mas você admite que, devido à sobrecarga da Saúde no Rio, em algumas situações desesperadoras, é de perder a cabeça?
Nada justifica a agressão a um profissional de saúde ou a qualquer pessoa; não dá pra gente justificar cenas de agressão por problemas do sistema de saúde. É óbvio que não temos um sistema perfeito. Vivemos em um país que ainda tem um sistema de saúde pública muito subfinanciado, mas temos avanços consideráveis no nosso SUS. Você pode enxergar um sistema de saúde que aumentou muito a expectativa de vida dos brasileiros ao longo dos últimos anos: chegamos muito próximo a outros países desenvolvidos. No entanto, também podemos enxergar um sistema de saúde que ainda tem dois dígitos de mortalidade infantil, mesmo com toda a melhora que aconteceu ao longo de toda a nossa história. Sem dúvida nenhuma, é um sistema que precisa de mais investimento, que precisa de mais estrutura, para que a gente possa atender a nossa população com cada vez mais qualidade.
Claro que existem pacientes que acreditam poder tudo e são regidos pela intolerância. Isso tem acontecido frequentemente? A própria Sandra disse que está acostumada a ser xingada pela demora no atendimento.
Infelizmente, têm pessoas que lidam com a própria vida e sofrimento de maneira muito dura. Eu, como médico de família, em algumas vezes, tive condições conflituosas com alguns pacientes, mas temos que entender que atrás da pessoa que está xingando e agredindo, tem uma outra pessoa ali. A gente tentar entender os motivos desse sofrimento, e os motivos que levam alguém a agir assim, muitas vezes, é essencial para qualquer serviço de saúde. Não é fácil para os profissionais lidarem com isso, mas temos que entender que, muitas vezes, a outra pessoa vai estar em um dos momentos mais dolorosos da sua vida, que muitas vezes é incompreendido pelo restante da sociedade. Já presenciei situações de pacientes em profunda depressão, agredindo profissionais de saúde e outras pessoas em um ato de pedido de socorro ou autodefesa. Nós temos que considerar que sempre há uma desproporção entre o profissional de saúde e o que está acontecendo com o paciente naquele momento. Agora, justificar agressão por demora no atendimento é algo que não tem justificativa – pode ser por algum tipo de sofrimento daquele paciente, pode ser por problema de saúde mental, utilização de substâncias alcoólicas, drogas.. Agora, por demora de atendimento, se a gente for olhar, nem sempre é a principal justificativa para uma agressão. No caso que aconteceu com a Dra. Sandra, não foi por demora de atendimento que aconteceu esse tipo de atitude.
Aumentou a sobrecarga no SUS? Quais as razões?
Sem dúvida alguma, o SUS atende muito mais gente hoje do que atendia anteriormente. Nós ampliamos muito o acesso no Brasil e na cidade do Rio. Anteriormente, nós tínhamos apenas 3% de cobertura de saúde da família; agora nós temos 60%. Nós fazíamos aproximadamente 2 milhões de consultas médicas por ano e hoje fazemos cerca de 8 milhões. Sem dúvida alguma, o nosso SUS aumentou, mas a nossa população também envelheceu, e há uma transição demográfica importante. E muita gente que tinha e usava o sistema de saúde suplementar perdeu capacidade financeira, migrando para o Sistema Único de Saúde, principalmente neste pós-pandemia.
É só dar um Google ou puxar pela memória que é recorrente a frase “falta médico na rede pública”, além de insumos. Quais são os números atualizados da Saúde municipal? Quantos profissionais trabalham atualmente no Rio? (Segundo a Câmara, o gov. Crivella dispensou 200 equipes, e Paes ainda não conseguiu sanar, tendo passado de 771 para 1.268 atualmente, de 40% para 56% da cobertura).
Todo mundo consegue puxar da memória problemas do sistema de saúde: falta de médico ou problemas de insumos. Nós precisamos ver que problemas sempre vão existir, mas é muito importante considerar o que tínhamos anteriormente e o que temos hoje – conseguimos avançar muito no SUS, no Brasil e no Rio. Os indicadores estão aí para todos verem: redução da mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida, diminuição de internações por condições sensíveis à atenção primária. E conseguimos avançar enormemente no número de acompanhamento pré-natal. Há um avanço do SUS, mas, claro, conforme o sistema vai avançando, os problemas vão mudando de natureza. Não tínhamos saúde da família; hoje temos, mas temos dificuldade de arrumar médicos para algumas regiões da cidade do Rio. Por questões de violência e até por outras questões, nós não tínhamos unidade de pronto atendimento – hoje temos. Os locais para o pronto atendimento do Rio são muito maiores do que tínhamos anteriormente. Hoje temos 14 Upas, 115 clínicas de família, mais 5 novas unidades regionais de urgência e emergência, mais 5 novos hospitais. Sem dúvida nenhuma, nossa capacidade de atender a população aumentou muito.
É real a dificuldade em conseguir médicos para algumas localidades? É possível inserir profissionais na folha do município?
É real. Em muitas localidades, temos vagas abertas com alto salário, com boa estrutura física, mas não conseguimos médicos para essas áreas. E não é só no Rio, é no Brasil. Isso também é um problema de outros sistemas de saúde do mundo todo. Conseguir formar médicos para essas localidades é um desafio. Ele só é vencido com investimento e ação integrada entre formação, universidade, planejamento de formação de recursos humanos e também com uma boa gestão local, com boa estrutura física e capacidade do médico de resolver os problemas daquela população.
Qual a maior dificuldade ao lidar com a saúde no Rio?
Sem dúvida nenhuma, o maior desafio do SUS da cidade do Rio é lidar com a questão do subfinanciamento. Por mais que a Prefeitura do Rio invista mais do que as outras capitais com seus recursos próprios, o Brasil ainda é um país que investe pouco em saúde pública. Nós somos o país da América Latina que tem o menor investimento em saúde pública em relação aos impostos que a gente paga. Nós temos um desafio imenso de lidar com o subfinanciamento, e isso é um pouco da minha discussão em Brasília. Nós temos uma pizza de distribuição orçamentária, principalmente na distribuição orçamentária do estado e do governo Federal, que é muito aquém das necessidades da população e muito diferente da pizza de distribuição orçamentária dos países desenvolvidos.
Você pegou a pandemia, situação enfrentada por poucos governos e foi muito elogiado (ganhou projeção, por exemplo, tendo mais de 90 mil votos como deputado federal). O que essa experiência trouxe pra você, profissional e pessoalmente?
A pandemia foi, sem dúvida alguma, o período mais triste da minha vida. Foram três anos terríveis, de muito sofrimento. Felizmente, nós tivemos uma condição muito boa na saúde do Rio, sempre focado na ciência, evitando qualquer tipo de ideologia na definição das ações de combate à pandemia. O reconhecimento da população também foi muito alto. Tive 98 mil votos de pessoas que acreditam ser possível construir um sistema de saúde melhor, que é possível defender um sistema de saúde de mais qualidade, utilizando evidências científicas, utilizando experiências, tanto do Rio quanto no exterior, na formulação de leis e na defesa de um orçamento público mais próximo do orçamento público de países desenvolvidos.
Qual seu atual foco agora?
Agora, meu foco é conseguir avançar na integração entre as redes federal, municipal e estadual. Como deputado federal e secretário, posso evoluir nessa discussão de integração com muito mais propriedade, também discutir na Câmara Federal a importância de ter leis que tornem o sistema de saúde muito mais eficiente, como um projeto de compras públicas de marketplace, que tenho tocado, defender alíquotas diferentes para produtos que fazem mal à saúde da população, como defender mais recursos para a saúde pública, tirando recursos de áreas que de fato não fazem nenhum sentido para a sociedade e que só concentram renda para as pessoas que já têm mais renda. Onde gastamos nosso imposto e colocamos nossos recursos públicos são discussões que precisam ser debatidas com muito mais responsabilidade pela Câmara e também pelos gestores públicos de maneira geral.