“Só uma coisa me entristece: o beijo de amor que não roubei”, diz a letra do Abel Silva.
Há mais coisas que me entristecem, e entristecem muito mais. O leitor que não lê, por exemplo.
Ele agrupa as letras em sílabas, as sílabas em palavras, as palavras em frases – mas não lê.
Ler é embarcar – e há “leitor” que se contenta em acenar do cais, do saguão, da plataforma.
Como na canção do Erasmo Carlos, “chove chuva na sua boca / você não bebe. / Há palavras, existem letras” – mas ele não forma, em sua mente, “as frases loucas / que cultiva por aí”.
Ler é mergulhar – e há “leitor” que tem medo de não dar pé, de ser levado pela correnteza. E se agarra à borda do texto, preso ao colete salva-vidas que lhe permita boiar pelas páginas, sem tocar o fundo. Teme que ideias novas o afoguem, entrando pelas narinas, levando oxigênio aos pulmões, e daí ao sangue, e daí ao cérebro, e daí à alma.
Parafraseando Caetano, sim, o leitor “poderia abrir as portas que dão pra dentro. Percorrer correndo corredores em silêncio. Perder as paredes aparentes do edifício. Penetrar no labirinto – o labirinto de labirintos” – dentro do pensamento. Mas ele prefere fechar as janelas, correr as cortinas, dar duas voltas à chave.
Ler é alçar voo – e há “leitor” com horror à vertigem, ao ar rarefeito das alturas. Ouviu que o Sol lhe pode derreter a cera das asas, que o motor pode falhar, o paraquedas não se abrir, a rede de proteção ter sido retirada.
E não sai do chão. Não toma o trem. Não entra no mar.
Não segue ao lado do autor “until the final flicker of life’s amber”, como queria Tom Jobim.
O leitor que não lê é amante que não beija, paixão que se perde por pudor.
Ler não é uma reação física, mas química. Naquela, muda a estrutura; nesta, muda a natureza da matéria. Amasse uma folha de papel; rasgue-a – ela continuará sendo papel. Agora queime-a – não é mais. A leitura é o fogo em que arde quem lê.
O “leitor” que não lê – que não veste a roupa do personagem, não se permite sentir como sua a voz do autor, não sorve seu copo de cólera, não morre sua morte – é alguém que fuma e não traga, ajoelha e não reza, transa e não goza.
“Você que ouve e não fala / Você que olha e não vê / Eu vou lhe dar uma pala / Você vai ter que aprender”, dizia Vinícius antes de mandar o farsante para a tonga da mironga do kabuletê.