Tinha uma palavra no meio do caminho… – a frase pode definir Mar do Vale (Márcio do Vale Carvalho), 55, artista visual carioca — da gema — que tem levado poesia para as sarjetas, muitas vezes, onde a arte ou um olhar benevolente nunca chegarão. Por um momento, pode ser um refúgio.
Se você passa pelas ruas do Centro, Glória, Catete (onde ele mora), Santa Teresa etcetera, mesmo com o relógio apertado, deve ter notado algumas palavras soltas, escritas em letras maiúsculas e brancas num meio-fio, no asfalto, paralelepípedos, tapumes, bancos de concreto. E se pergunta: quem faz isso?
Uma “Promessa” aqui, um “Adeus” acolá, um “Mistério” escrito numa espada de São Jorge, um “Encantamento” num canto da Lapa, um “Beijo” no asfalto, a “Miragem” à beira da Baía de Guanabara, a “Imensidão” na vista em Santa Teresa, o “Certeza”, num banco de concreto no Aterro, “Paixão” em algum lugar e um acervo de mais de 200 palavras anotadas esperando o momento e o cenário certos e nunca simplesmente jogadas.
Todos os dias, ele sai com a bolsa a tiracolo, a tinta branca à base d’água (fácil desmanchar, ainda mais quando chove) e um rolinho esperando uma nova oportunidade. O trabalho de Mar vai muito além das palavras, só que elas o levaram a muitos lugares. Depois de criar um perfil nas redes sociais, em 2020, começar a postar e ficar conhecido nas ruas, fez algumas exposições (no Museu da República e na Fábrica Behring), foi chamado para dar palestra em escolas, produziu os vídeos do coletivo Eletrorama (uma mistura de música, poesia e criatividade), decidiu juntar tudo num ateliê na Urca (Urbano Santos, 15).
Tudo que ele faz tem crítica social e protesto político – repercutiu, durante a pandemia, o cobertor com a frase “Vai passar é o caralho”, numa praça na Glória. A frase também foi gravada na tampa de uma marmita, cujo conteúdo era arroz, feijão e ovo frito para denunciar a inflação à época — e entre os trabalhos sobre o mesmo assunto, um botijão de gás com a etiqueta “Prada”, a grife italiana, um pacote de feijão da grife “Gucci” e um pacote de carne Louis Vuitton. Esteta nato, ele também ama tirar fotos da moda de rua e criar roupas. Ou ainda o “AMO”, uma arte inspirada na logo do sabão Omo. “Pra mim, a verdadeira galeria de arte é a rua”, diz.
Como você começou o trabalho com as palavras nas ruas?
Eu estava parado há algum tempo, porque tenho quatro filhos, mas sempre tive uma relação forte com a cidade. Sou de Campo Grande, mas vivia no Centro e Zona Sul. O Rio é um lugar cosmopolita, e é isso que me interessa. As palavras surgiram espontaneamente, depois de fotografar objetos, como sapatos e roupas vendidas nas calçadas da região central por aqueles que não podiam ficar em casa durante a pandemia. Também escrevi poesias em cartazes de supermercados e fotografava pessoas nas ruas, umas senhorinhas e todo tipo de gente que só tem nessa região. A primeira a escrever foi “Deserto”; depois vieram as outras.
E por que escolheu a gravura quando cursou Belas Artes?
Sempre gostei da linha, do traço, do grafismo. A gente chama o ateliê de gravuras de cozinha porque ela tem um lado laborioso que você precisa trabalhar bastante com químicas, ácidos e tudo mais. E eu tive um grande mestre japonês chamado Kazuo Wakabayashi, o grande gravurista Adir Botelho, o Marcos Varella, mas também fui aluno da Celeida Tostes, da Lygia Pape e de grandes artistas. O grafismo permite humor, que a gente sacaneie, faça intervenções divertidas, políticas e sociais. Temos uma tradição na gravura muito forte no Brasil desde que Dom Pedro trouxe um gravurista para retratar o Rio, e essa técnica se simplificou. Então, assim, a gente tem essa força, você vê o cordel, isso tem uma força gráfica muito grande. Mas também tive uma educação clássica de belas artes: desenhava modelos vivos, que eu adorava, mas não queria viciar meu desenho.
Como escolhe as palavras?
Não sei o que é mais bonito e emocionante: se são os bilhetinhos que ganho sugerindo palavras ou a forma pela qual chegam até mim para entregar… Mas 90% delas eu fiz para os meus filhos. Não tenho uma regra, um motivo nem um estudo , elas surgem soltas, até porque uma palavra pode ter mil sentidos para pessoas diferentes. Fui simplesmente espalhando poesia por tudo quanto é lugar, transformando o que não dava pra transformar, mas do meu jeito. Uma das únicas expressões é o ‘vai passar é o caralho’, que todo mundo comentou na cidade, quando coloquei num cobertor no chafariz da Glória. Nos primeiros meses de pandemia, a gente achava que ia passar, mas não passou. A ideia do vai passar me incomoda muito porque parece que você quer voltar ao que era antes, e o que era antes não era legal pra quem está ali na rua passando fome, pra quem está na injustiça social que a gente sempre viveu. A frase me soava burguesa, de quem estava querendo uma normalidade da qual ele era o privilegiado. No Aterro, por exemplo, escrevi ‘Miragem’, e muita gente tira foto porque parece que o Rio está lindo, mas aquilo é um mar de merda e esgoto… Mas pode ser miragem e lindo também. Crio quase uma charada, brincando com as pessoas.
Alguma curiosidade com a sua arte?
Alguns psicólogos começaram a me seguir nas redes, inexplicavelmente; acho que é porque algumas palavras soam como incentivo. Teve uma psicóloga que mandou mensagem falando da palavra ‘Certeza’, no Aterro, dizendo que ninguém tem certeza de nada na vida. Mas a palavra está no meio de uma árvore repartida em duas, indo em duas direções. Claro que não vou ficar explicando meu trabalho porque cada um tem uma leitura. A graça da arte é essa. Tem gente também que fala para eu dizer que sou suburbano… Hoje em dia, existe quase uma moda em ser da periferia, mas eu nunca me preocupei muito em fazer apologia suburbana. Meu trabalho fala naturalmente para esse público quando eu me posiciono politicamente. E comecei a ser parado nas ruas com pessoas me entregando uma lista de palavras para eu fazer. E eu adoro essa interação. Mário Chagas, diretor do Museu da República me descobriu e me escreveu pra eu fazer algo por lá; assim surgiu a mostra ‘No meio do caminho tinha uma palavra’, com 50 quentinhas no jardim. Daniela Name, curadora, também me convidou para espalhar a poesia de Dona Ivone Lara pela cidade, um projeto lindo para a Revista Caju. E também expus 40 quentinhas no Ministério Público do Rio.
Como escolhe um lugar?
A sarjeta parece ser o último dos lugares… Ninguém quer a sarjeta. Eu estou escondendo as palavras. É sutil porque quero que meu trabalho seja para todos, do mendigo ao intelectual. Os grafiteiros e pichadores adoram meu trabalho, me perguntam se eu não quero colocar numa parede, num ponto visível, mas estou escondendo as palavras, sabe? Eu adoro a sutileza, a delicadeza. Existe uma harmonia entre o meu trabalho e a cidade. Elas se juntam. E faço mais na região central porque são bairros que aceitam mais. Sou um rato da cidade, ninguém anda a pé mais do que eu.
Como se vê daqui a alguns anos?
Não vou parar de trabalhar, essa é minha luz. Sempre procurei ir pra frente, não quero ficar rico, mas acho que o artista é merecedor porque somos trabalhadores. Tudo está catalogado; tenho umas 200 palavras na cidade. Estou agora realizando o ateliê porque é a primeira vez que estou conseguindo reunir todo o meu trabalho. As quentinhas, as roupas que faço, o Amo, porque, tudo reunido, as pessoas entendem mais. Então estou usando como se fosse uma galeria.
O que, atualmente, você considera mais desejado?
Estão adorando as espadas de São Jorge. Nunca imaginaria… Várias pessoas têm divulgado e, com isso, as encomendas aumentaram. Estou olhando para três baldes cheios que preciso pintar. E a durabilidade é ótima, tem umas com mais de 1 ano. E acredito que isso seja uma retribuição, sabe? Com certeza, é o retorno de várias ações positivas e que estão ajudando a colocar comida na minha mesa. O ‘Amo’ é a mesma coisa, seja em quentinhas, seja em impressões. A Beatriz Milhazes comprou, a Adriana Varejão postou vários vídeos meus, mandei algumas para o Nando Reis, a Regina Casé amou as espadas… Agora estou fazendo impressões das palavras em seus cenários com moldura. Fiz tudo com um Iphone 6, sem Photoshop, sem nada.
Mas pensa em abrir o leque?
Gosto de mostrar meu trabalho com simplicidade e criatividade. A comunicação me interessa, mas não em fazer trabalho para críticos de arte. Cada um tem seu lugar no mundo, e não me vejo muito grande porque eu sei que sou muito específico. Você vê influenciadores com 50 mil seguidores e ganhando dinheiro fazendo coisas que eu vou morrer sem conseguir. Mas não é esse meu objetivo, mas a dignidade. Sou muito crítico em relação ao meu trabalho e não acho ninguém genial. É tudo muito chato pra caramba, por isso enchi o saco de artes plásticas. E lá atrás, quando eu vejo um trabalho meu, vi quanta merda eu fiz. É bom que a gente tenha esse desprendimento porque, só assim, você está livre para descobrir coisas boas.
Projetos futuros?
Este ano, ainda vou formatar um projeto em escolas públicas. É incrível o trabalho que fiz ano passado, o ‘Poetizando a nossa cidade’, falando sobre o meu trabalho e interagindo com as palavras, fazendo as crianças colocarem nomes nos lugares da cidade, até no próprio colégio. Exercita o vocabulário e a criatividade. Outro trabalho que mantenho são os vídeos do Eletrorama.
Onde você gostaria de fazer intervenções que não fez? Passou algum aperto?
Não é qualquer tipo de palavra, porque você tem que ter um cuidado com as pessoas, as crianças. Acredito que é por isso que nunca tive problema nas ruas, porque existe uma harmonia entre o meu trabalho e a cidade. Uma ideia é fazer em Campo Grande e em todos os subúrbios. Em todas as minhas incursões, nunca passei nenhum aperto nas ruas, mas eu escolho bem. Sou um rato da cidade.
Por Dani Barbi