“Amarás” (Editora Lisbon) é o novo livro do psicólogo Sócrates Nolasco, que costuma fazer provocações filosóficas sobre os padrões comportamentais, com lançamento na Travessa de Ipanema, na sexta (10/03), às 19h.
O autor produziu o novo trabalho, inspirado em uma passagem descrita por Clarice Lispector em “A Hora da Estrela”, em que dizia “faltam palavras para que pudesse descrever seus sentimentos”, o que a levava a não conseguir expressar o que vivia, e acabou num ensaio sobre as estratégias de linguagem que permeiam o querer, as alianças e as rupturas.
No mundo atual, o verbo do título fica bem complicado num contexto polarizado, mas ele explica que “’Amarás’ trata dos processos biopsicossociais necessários para podermos dar significados ao amor. O verbo foi posto como um Mandamento, sem que se soubesse a extensão e as implicações que ele teria para a vida”. Entendeu? Resumindo bem superficialmente, à medida que a cultura foi se desenvolvendo com o tempo, a máxima “amar o próximo como a si mesmo” ficou bem mais distante.
O amor é apenas um dos muitos assuntos que Sócrates domina – há quase 40 anos, ele estuda o que significa ser homem no Brasil. É autor dos livros “O mito da masculinidade” e “De Tarzan a Homer Simpson”, quebrando tabus na discussão do sexismo, assuntos sempre atuais.
Esse é seu 5º livro, e foge aos seus temas habituais sobre a masculinidade. Por quê?
Comecei a perceber que daria para investigar outras questões que não tivessem uma relação direta com a questão masculina e acabei me envolvendo em alguns grupos de trabalho associado à Neurociência, à Biologia Celular e avancei um pouco mais na Psicanálise. Na Psicologia, existem áreas pra tudo: as cognitivistas, as existencialistas, humanistas e por aí vai, o que deixou as questões mais ligadas ao corpo no passado, dividindo o que é natureza do biológico e cultural. Aí eu comecei a perceber que nem tudo é cultural. Por exemplo, organizar os seus projetos de vida, sonhos, trabalho, isso é cultural, mas a maneira como a gente percebe, elabora, a forma como suportamos lidar com as adversidades tem um componente biológico. Então, o ‘Amarás’ fala da questão biológica.
Como assim?
Existe uma experiência que antecedeu a linguagem e que vai nos ajudar a falar e a descrever o amor. Se não tivéssemos pais pra cuidar de nós quando bebês, morreríamos. Essa é uma relação de cooperação que a gente preteriu à medida que entramos na cultura. ‘Amarás’ tem a ver com o amor, mas considerando a importância, o vínculo e a cooperação para a sobrevivência. Hoje, a gente passou a competir muito mais do que cooperar porque um quer ser melhor que o outro em tudo. Exemplo: as pinturas rupestres em que você tem um bisão enorme e um grupo de caçadores em volta, dentro do desenho do bisão, tem um coração desenhado. Se eu for olhar para o coração com as referências culturais de hoje, falaria que aquilo é amor, porém, para aqueles caras, a marca dizia onde o sujeito teria que acertar a lança pra derrubar o bicho, entendeu? Entrar numa cultura em que tudo é interpretado faz com que chamemos aquilo de amor, mas é uma experiência, e cada um tem a sua.
E a evolução desse amor? Hoje está uma coisa mais banalizada e as pessoas, descartáveis?
É mais fácil amar a humanidade do que amar o próximo. Você pode amar o meio ambiente, seu amigo que mora longe, mas pergunta sobre o vizinho? A pessoa logo vai dizer ‘aquele cara é um escroto’. As dificuldades que existem hoje nas relações amorosas, familiares, profissionais e sociais dizem respeito a uma incapacidade de as pessoas identificarem quais são, verdadeiramente, suas necessidades. Tudo está muito no mundo da fantasia, o amor virou slogan. Há um desgaste que implica a incapacidade de as pessoas saberem quais são as suas necessidades afetivas e o que que elas poderiam encontrar nos vínculos sociais, porque muita coisa do que se deseja, do que se imagina, ela não vai encontrar. A famosa ideia do ‘que seja eterno enquanto dure’ não é bem assim. A natureza pouco se importa com o modo como a vemos. O mundo não obedece ao modo como estamos constituídos.
As redes sociais são um fator dessa banalização?
Se o sujeito fica pendurado numa rede social o dia inteiro – e ela tem muitos benefícios –, procurando um celeiro de satisfação emocional, não vai conseguir; daí vem a frustração. Eu orientei o trabalho de uma de aluna sobre uma personagem japonesa chamada Hatsune Miku, um holograma que os caras criaram; hoje, ela faz show no Japão, e as pessoas pagam pra ver. É um personagem irreal, inventado, mas as pessoas compram. Isso é muito louco e é um reflexo da sociedade. O que ainda nos salva é a nossa capacidade de vinculação com quem está fora da gente, ou seja, o outro, senão vou continuar vivendo as minhas alucinações, minhas angústias, porque eu não consigo fazer contato com o mundo.
O amor nos salva da loucura?
Sim, o amor de cooperação, que pode estar em qualquer relação. No entanto, na verdade, o livro mostra que essa cooperação já desapareceu porque as pessoas que estão competindo vão lhe dar muito mais dinheiro do que as que estão cooperando; com isso, cria-se outro tipo de mecânica social. A gente inventa um remédio, mas ele tem sempre um efeito colateral – funciona pra um, mas pode não funcionar pra outro. Não existem modelos humanos perfeitos e é por isso, que a gente precisa de cooperações.
Estamos próximos do Dia Internacional da Mulher, e vemos um mundo atual ainda muito machista, com criações como ‘coach de masculinidade’ (caso do influencer Thiago Schultz Campari) em pleno século XXI. Estamos num retrocesso?
Quando as informações estão além da capacidade de processar, a gente tende a reduzir a história, como uma criança que acredita em Papai Noel e você tenta convencê-la do contrário. Na cabeça dele, não existe outra possibilidade. E o que os adultos fazem, às vezes, quando não conseguem amadurecer? Dar soluções simplistas. Duvide sempre quando os caminhos forem simples. Outro fator é que, atualmente, existe público para todo tipo de oferta e, se existe uma demanda, é porque possivelmente existe um problema.
Mas isso não é perigoso e pode levar à violência?
A violência contra a mulher continua existindo, mas eu acho que a criminalização inibiu muito o ato. Culturalmente, ninguém duvida que uma mulher é mulher; já, na lógica social da masculinidade, isso acontece. É uma lógica simbólica, e os símbolos estão carregados de afetos. A violência fica sendo uma tentativa de se manter com uma certa integridade. Ao sentir-se destituído de sua virilidade, o indivíduo imagina que poderá tirá-la de alguém que a tenha. A violência surge como uma tentativa de resolução de conflito na busca de reconhecimento e visibilidade social. Para se sentirem homens, eles se envolvem em situações violentas para resolver um impasse existencial que transcende a dimensão sexual. Contudo, se todos os homens estivessem no mesmo patamar dos homens que são violentos, não existiriam mais mulheres vivas. Na década de 1990, morei em São Francisco (EUA) e observei o seguinte: existe um bairro cuja maioria dos moradores eram gays do sexo masculino, e em outro, lésbicas. O nível de violência no bairro delas era muito maior do que no dos homens. Por quê? Pelo código cultural do registro de masculinidade, em que o homem precisa exibir sua masculinidade pra provar que é homem. Se você for observar, os grupos de trans homens são muito femininos, colocam peitos, tomam hormônios, e as trans mulheres ficam bombadas de academia, até pelos códigos que a cultura estabeleceu com o masculino e feminino.
Outra coisa que tem chamado atenção nesses códigos é que a mulher vive uma batalha contra rugas, cabelos brancos, flacidez, enquanto envelhecer para o homem é normal…
Todo mundo vai envelhecer; ninguém pode parar o tempo, mas isso é uma pressão de fora da sociedade, principalmente no Brasil. Morei nos EUA e também na França e é notável a quantidade de mulheres que usam cabelos grisalhos longos, não curtos. Coincidentemente, são lugares onde as mulheres questionam mais o que se exige delas. Quando você tem isso, é dona da própria vida. E elas são muito charmosas e elegantes porque não duelavam com a idade. Se uma pessoa ficar achando que precisa ter 20 anos eternamente, aí só Deus, né? No Brasil, existe muita falta de visão crítica e uma ilusão de que, ao se tornar uma mulher nos ‘padrões’ , ela será amada. Se não colocar botox, fizer harmonização, pintar os cabelos, ela não será olhada. No Brasil, todos têm uma opinião para dar, mas são poucos os que conseguem desenvolver um ponto de vista sobre o que se conversa.
Como os homens encaram a masculinidade e o envelhecimento?
Tem muito homem que não consegue envelhecer: é viagra pra cá, pra lá, e não tem como manter a ereção aos 80, 90… Não é um problema psíquico, mas biológico. Eu gosto muito de esporte e tenho reparado que a quantidade de mulheres frequentando academia é muito maior na minha idade (66). Os homens estão mais caídos fisicamente do que as mulheres; elas estão se cuidando mais, para envelhecer melhor. O homem tem muito aquele pensamento de ‘me aposentei, ganhei muito dinheiro, agora a vida acabou’. Quanto às mulheres, as transformações sociais e os movimentos feministas fizeram com que cuidassem mais delas mesmas. Ao contrário das mulheres, os homens não refletiram sobre o seu papel e, do ponto de vista afetivo, fica complicado porque eles não criam relações com intimidade e compromisso por medo, despreparo ou inibição.
Sobre o sexo, você costuma dizer que, depois do 60 anos, ficou tudo liberado, mas a qualidade dos vínculos de intimidade foi liquefeita. Por quê?
Depois de uma idade, não existe mais gente pra você trocar. É o que eu costumo dizer que fica sendo uma masturbação em 3D. Na verdade, você tem maturidade para realizar as fantasias, mas não tem a outra pessoa para fazer isso, não tem vínculo físico – mesmo os casados. Tem um filme, “Amor nas alturas” (2021), em que um comissário de bordo se relaciona com uma passageira frequente só no ar e, quando ele pensa em ter algo, ela diz que nunca pensou em abandonar o marido, ou seja, era uma fantasia que ela estava vivendo. Hoje em dia, a gente pode transar com A, B, C, D, S… Mas até que ponto não passam de encontros apenas masturbatórios? Ok, a masturbação pode resolver muitos problemas, mas vai chegar um determinado momento que vai demandar um vínculo, e não vai mais funcionar.
O que mais você tem visto no consultório?
Muita depressão. Os casos de pessoas com dificuldade maior de lidar com sua própria excitação aumentaram; pelo menos, na minha clínica, aumentaram mais do que usualmente nos últimos anos. Mas sou crédulo com relação à vida. A gente pode estar vivendo tempos difíceis, socialmente, economicamente ou politicamente, mas acho que a gente sempre tem portas de saída. A vida é uma bênção, mesmo quando ela é dura com a gente. Como disse acima, é mais fácil amarmos a humanidade do que o sujeito do nosso lado, então voltei a andar com caderninho na rua, de tanta coisa que passei a observar, coisas boas e ruins. Está me chamando atenção ver como as pessoas colaboram nos pequenos atos, porque, hoje em dia, tudo virou macro — esse é o problema.
Por Dani Barbi